O bilhete premiado e a sabedoria ancestral

Postado em 6 de mar. de 2013 / Por Marcus Vinicius

O nome dele era Bobby, um americano (ou inglês, ninguém sabia direito) que morava há tanto tempo no Brasil que todo mundo já o considerava mais um brasileiro brincando de ser gringo do que qualquer outra coisa.

Conservou algum sotaque, é lógico, mas de resto, bem pouco. Vivia com sua esposa num sobrado acima de um misto de lavanderia para turistas e casa de câmbio que mantinham, e possuía o hábito de chamar todo mundo com quem conversava de "boy" ou "my friend", o que só reforçava aquela impressão de brasileiro brincando de gringo.

Sempre tinha alguma história ou lição pra contar, como se fosse uma espécie de Mestre Miyagi misturado com bêbado de pub, coisas do tipo "no céu não deve ter cerveja, por isso vamos beber toda que pudermos enquanto estamos por aqui" e coisas do tipo.

Um dia ele estava sentado numa cadeira de praia na frente da lavanderia, fumando um charuto e um chapéu panamá (mais uma coisa para reforçar a idéia de brasileiro se fingindo de gringo, ainda que o seu bigode ruivo desautorizasse um pouco essa teoria) e passou um vizinho que sempre trazia no rosto aquela felicidade que chega a irritar no formato de um sorriso babaca, mas que curiosamente estava mais sorumbático do que torcedor do Palmeiras no século XXI.

- Olá, my friend, o que você tem hoje?

- Ah, meio chateado, problemas no casamento, sei lá, rotina, essas coisas, qual o seu segredo para viver sempre bem, hein?

- Ah, boy, quem me dera viver como os outros pensam que eu vivo, preferia viver como eu penso que vivem os outros, mas você quer mesmo saber o segredo?

- Quero sim e desenvolve bem, porque não tô afim de chegar em casa cedo.

- Veja eu e a patroa, vivemos consertando a relação que nem carro velho. Lanternagem aqui, fazer motor ali, trocar uma correia, não tem jeito, o uso desgasta.

- Se desgasta...


- Mas então, já teve uma época em que ela mal me olhava. Eu chegava perto dela com aqueles decotes que eu acho lindos, com aquele cheiro que eu me acostumei, abraçava, beijava e nada, parecia que eu não tinha mais o clima da coisa.

- Mas e aí?

- E aí, boy, resolvi dar a ela o que ela me dava. Pouca coisa funciona tanto quando fazer ao outro o que você não gostaria que ele fizesse contigo, mas que faz do mesmo jeito. Comecei a ignorar também, a me segurar para não cheirar o cabelo molhado quando saía do banho, a não procurar nada além daqueles apertos de mão com sabor de canja de galinha sem sal que ela me dava, dormi no sofá uns dias fingindo que adormeci enquanto via TV.

- Deu certo?

- De início não, mas eu continuava o mesmo, entende, my friend? Aquele por quem ela se apaixonou ainda estava ali. Uns anos mais velho, claro, mas o mesmo. O mesmo cabelo, a mesma voz, as mesmas piadas, o mesmo mau-humor seletivo, o mesmo beijo, o mesmo eu. Se ela gostou um dia, ia gostar de novo, bastava sentir um pouco de falta.

- Claro, claro, só se dá valor ao que se perde.

- E aí ela veio se chegando, querendo mais do que um aperto de mão, mais do que um beijo, mais do que só um amasso.

- E aí você se vingou, né? Quer dizer, finalmente deu o troco e desprezou de vez pra fazer ela rastejar.

- Você rasgaria um bilhete de loteria premiado, só porque já jogou 300 vezes antes e nunca ganhou, boy?

- Claro que não.

- Então, o que queria eu já tinha conseguido, estava no deserto, apareceu uma cerveja, vou reclamar porque deveria ter vindo uma garçonete do Hooters junto?

- Pensando bem...

- Não pense demais, se nesse campo pensar fosse mesmo tão bom, não tinha tanto intelectual cheio de dor de corno por aí.

1 Comentário:

FelipeBFontana postou 16 de março de 2013 às 09:59

Sabedoria, e conhecimento tácito. Esses figuraças estão em todos os lugares, e ninguém os vê.

 
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