O mesmo ano todo dia

Postado em 29 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 1 Comentário

Acordavam todos os dias sob o peso seguro da rotina. Mal se olhavam, mal se viam, ocultos sobre tanto mesmo. E assim passava o tempo, assim passavam-se os meses, os anos, que só não passavam desparcebidos por causa do ritual mecânico, seguro, rotineiro do dia 31 de Dezembro.

Mas, não fosse por isso, os anos seriam dias, de tão iguais. O mesmo ano acontecendo todo dia.

A rotina, ou melhor, a mesmice, é como um monte de terra que a pessoa vai colocando sobre si. Até um certo momento, aquilo é voluntário, reversível. A partir de um ponto, que não sabemos muito bem qual é, torna-se compulsório. O peso é maior do que a nossa vontade de retirar tudo de cima, e só nos resta continuar depositando ali, grão em grão, resignadamente, aquela terra que terminará nos matando.

É assim, grão em grão, que casais acordam um dia mal se olhando, grão em grão, mal se falando, grão em grão, mal se desejando. É assim, grão em grão, que nossa juventude vai embora, levando na sua grande bagagem sonhos e, mais do que sonhos, esperanças e, mais do que esperanças, nosso sopro de vida.

Nos tornamos a conta não paga, a academia faltada, a TV ligada. Nos tornamos o beijo não dado, o encontro não marcado, o coração que só não desliga de sua função mantenedora de vida, vida quase vazia, quase cheia, vida quase.

O cheiro gostoso do feijão fresco, que lembra nossa infância, o filme recém-lançado, o doce da confeitaria predileta, uma dose de bom whisky. A fumaça do cigarro, que dança quando a sopramos. A fumaça do café, que dança e acaricia. O cheiro do perfume, o gosto do nada presente em nossos pequenos gostos, em tudo aquilo que usamos para nos definir, já que todo o resto da nossa vida não nos define.

E vem a hora do almoço, o dia chega ao meio, cada garfada levada à boca traz consigo tudo aquilo que engolimos junto com a comida, nossos sentimentos contidos.

O riso, o lamento, o choro, a epifânia, cair na real. Passamos a maior parte da vida entre sentimentos mornos, porque julgamos que nosso coração, nosso corpo e nossa mente não teriam resistência suficiente para viver mais vezes nos extremos.

E assim resistimos ao extremo do não sentir. Do sorriso contido, da alegria calculada, do choro preso, da gargalhada abafada, dos amores desperdiçados, sempre de olho no passado. Dez, vinte, trinta vezes nos machucam, porque deixar que façam isso outra vez? Porque deixar que alguém, quem sabe, nos surpreenda?

Ele é assim mesmo. Ela é assim mesmo. Eu sou assim mesmo. Porque mudar? Porque oferecer-se e ofertar algo diferente, se o mesmo dá certo? Dá certo? Dá mesmo? Então pensando nisso, você agora sorri um sorriso de graça? De afirmação? De ironia? Ou de resignação? Ou não sorri sorriso algum?

Mas já é noite, ao voltar para casa quase desejamos a felicidade descompromissada do velhinho que assobia velhas canções ao nosso lado, rosto vincado, moreno, cabelos muito brancos e aquela tranquilidade de quem já amou todos a quem deveria amar, já sofreu por todos por quem deveria sofrer, soprando música do peito, como quem não precise mais que o amem, o desejem, o necessitem.

E ao chegar, o boa noite trocado mecanicamente é levado embora no banho, descendo pelo ralo junto com a água e mais um pouco de você. Um redemoinho de poeira, espuma e urgências.

Beijos, gemidos, suor, fluidos. Excelente filme, meio pornô para o horário, mas muito bom. É hora de ir para a cama.

E mal se olhando, mal se vendo, ocultos sobre tanto mesmo, puxam sobre si o cobertor da noite, dormindo todos os dias sob o peso seguro da rotina.

Mal na Foto

Postado em 28 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 6 Comentários

Regras existem para pôr ordem em certas coisas e para serem usadas em todo o tipo de inutilidade também. É raro quem não reclame da falta de leis no Brasil, sem saber que temos leis até demais, e que o problema não é a ausência delas e sim a falta de cumprimento e a quantidade de leis inúteis.

Falo isso porque ocorreu um episódio comigo que traduz bem essa tara por regras, ainda que sejam de uma inutilidade digna de um legislador de Brasília. Fui ver uma exposição de fotografias na Caixa Cultural, no Centro do Rio de Janeiro, chamada World Press Photo, com as melhores imagens do fotojornalismo em 2009/2010 escolhidas pelos organizadores.

Como já tinha ido nessa mesma exposição ano passado, e na ocasião observei alguns fotógrafos (não eram contratados do evento, mas frequentadores mesmo) com câmeras profissionais registrando tudo, inclusive as fotografias expostas, retirei a câmera compacta que me faz companhia diária da mochila e fotografei uma moçinha de boina que admirava compenetrada uma das fotos expostas.

Era um desses belos instantes que contam uma história e desejei eternizá-lo. Fiz a fotografia e quase instantâneamente um segurança engravatado veio em minha direção dizer que era "proibido fotografar ali".

Vejam, entendo que não se possa fotografar pinturas, pois a luz do flash causa danos às cores das tintas, entendo que não se possa fotografar algo sigiloso, que possa ser copiado, entendo perfeitamente que não se possa fotografar ou filmar um espetáculo que comercializará sua imagem posteriormente, mas não poder fotografar dentro de uma exposição de fotografias que são inclusive disponibilizadas na internet me parece uma boçalidade digna de um criador randômico de regras inúteis.

Quem iria ali tirar uma foto em close e depois apresentar como se fosse sua? Uma cara-de-pau desse tamanho receberia a justa punição em um tribunal.

E como muito bem disse o fotógrafo Erico Elias "A fotografia revolucionou o panorama das artes justamente por seu potencial de reprodutibilidade(...) porque proibir que se fotografe dentro de exposições de fotografia? Porque tratar fotografias como obras de arte intocáveis e únicas, emparedadas e vigiadas? Alguns fotógrafos já exploraram a relação entre os museus e seus visitantes, caso de Elliott Erwitt e Thomas Struth. Imaginem se fossem proibidos de fotografar!".

Tive que dizer ao tal segurança que achava isso"engraçado", ele nervoso "Qual é a graça?", respondi "Ué, isso de não aceitarem câmeras fotográficas dentro de uma exposição de fotografias".

Ao que ele respondeu "Você está me chamando de engraçado?", e eu "Não, disse que isso é uma coisa engraçada, porque se estes artistas expostos aqui dependenssem da Caixa Cultural para produzir suas obras, eles não poderiam estar na Caixa Cultural expondo, porque a Caixa Cultural não permite câmeras", e ele "É uma ordem da diretoria (porque essa gente acha que a palavra "diretoria" deva assustar alguém?) estou fazendo o meu trabalho", e eu "Sim, eu sei que faz parte do seu trabalho transmitir esse tipo de regra engraçada aos outros".

Dito isto, guardei a câmera de volta na mochila e notei que o segurança chamou outros dois "parceiros" para ficarem me "observando". Incrível, porque não me neguei a guardar a câmera, não o ofendi, não continuei fotografando e, mesmo que fizesse tudo isso, ele dava uns dois de mim e me retiraria dali facilmente, mas como dizem no sul, difícil a valentia que ande sozinha e como eu digo aqui da minha casa mesmo: a ausência de um terno não dimunui um homem em nada, assim como a presença de um terno não transforma um energúmeno em homem.

Mas o despreparo de funcionários de baixo escalão no Brasil e especialmente no Rio de Janeiro, a terra dos péssimos serviços, não é surpresa, surpresa mesmo continua sendo o banimento do ato de fotografar em uma exposição de fotografias, banimento este que não servirá para guardar nenhuma propriedade intelectual, já que as imagens estão disponíveis na internet (e quem vier me falar em marca d'água, eu apresento o Photoshop CS5 que remove uma em longos 2 segundos), e servirá somente para impedir a captura de novos momentos, como o que coloco abaixo, fruto do meu "crime":


A Caixa Cultural ficou mal na foto.

Ópio do Povo

Postado em 27 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 7 Comentários

João, que poderia se chamar José ou até mesmo Chico, mora em uma rua de um mal servido subúrbio do Rio de Janeiro, mas que poderia ser de São Paulo, de Salvador ou do Recife. João, que poderia ser José ou Chico, é casado com Joana, que poderia ser Maria ou Josefa e, juntos, eles têm cinco filhos, que poderiam ser quatro, assim como poderiam ser seis ou, quem sabe, dez.

E assim João, que poderia ter qualquer outro nome, acorda de manhã bem cedo para pegar um ônibus lotado, que daria no mesmo se fosse um trem lotado ou uma lotação ilegal e lotada, para chegar na hora no colégio particular onde trabalha como faxineiro, um colégio desses que os filhos dos ricos estudam e os quatro ou cinco ou dez filhos de João, José ou Chico jamais poderiam estudar.

Ele não acha esse o melhor trabalho do mundo, mas o que mais ele poderia fazer? Poderia ser pedreiro, poderia ser servente, poderia ser office-boy, poderia ser frentista de algum posto de gasolina, poderia ser balconista de padaria, lavar carros, aparar grama, porteiro não poderia ser, porque não sabe ler e nem escrever muito bem. Gari também não poderia, porque exige segundo grau completo e João só estudou até a quarta-série.

Só não poderia virar bandido, porque isso ele não queria ser. Não porque se achasse muito melhor do que eles, mas porque sabia que seria preso. Sabia também que no Brasil é gente como ele que acaba morto ou na cadeia e, sabe como é, ele tinha cinco filhos para criar. Não é tanta coisa como dez filhos, mas já dava um trabalho danado, um trabalho quase tão grande quanto se fossem seis.

Aliás, João está preocupado por conta disso. É que Joana, que poderia ser Maria ou Josefa, acha que está grávida outra vez. Não é que não goste de ser pai, pelo contrário, é uma das poucas alegrias verdadeiras que tem na vida, mas é que criar cinco já é uma complicação.

Ainda mais porque o posto de saúde quase nunca tem médico disponível e, quando tem médicos não tem remédios, quando tem remédios não tem enfermeiros, quando tem enfermeiros não tem como fazer exames e, se por algum milagre, um dia tiver médicos, remédios, enfermeiros e exames, estará tão lotado que João terá que esperar tanto que, quando finalmente chegar sua vez de ser atendido, quer dizer, a vez de Joana, alguma coisa já estará em falta de novo.

Essa preocupação está acabando com o dia de João, mas ele não se desespera muito porque sabe que se não fosse a gravidez de Joana, seria a bronquite do filho mais velho ou quem sabe a greve na escola do mais novo, ou então o preço do feijão, da passagem, o vale que terá que pagar no final do mês ou o carnê de prestações que usou para comprar um aparelho de TV, para assistir o futebol no Domingo e para Joana ver as novelas durante a semana.

Vida de João não existe sem preocupação, pensava ele quase rindo da rima criada quase sem querer.

Mas neste mês especialmente João tinha uma outra preocupação, maior do que todas as outras. Este era um mês diferente, porque é um mês que só acontece muito de vez em quando, de quatro em quatro anos. João queria chegar logo em casa, porque junto com os amigos da rua iria enfeitar o lugar onde moravam com bandeirolas verdes e amarelas, pintar o asfalto esburacado com caricaturas de jogadores da Seleção e combinar o churrasco que fariam no dia do jogo de estréia na Copa do Mundo.

Acordar de madrugada naquele mal servido subúrbio, pegar o ônibus lotado para trabalhar como faxineiro numa escola que, se pudesse ter freqüentado, jamais teria que ser faxineiro, a incerteza da chegada de mais um membro da família que ele terá que amparar sozinho, já que ninguém mais parece ligar para eles, os preços, a vida, nada disso tinha importância naquele momento, o que importava agora era enfeitar sua rua, se reunir com os amigos, assistir a Seleção.

O que importava agora era que o técnico não deixasse o craque de fora, escalasse o time com a ofensividade e a arte que se espera do futebol brasileiro e que, no fim daquelas sete partidas de Copa do Mundo, o Brasil pudesse sair campeão mais uma vez.

Aí João, que poderia se chamar José ou até mesmo Chico, poderá encher o peito de ar e gritar a plenos pulmões: eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor!

Não sei com que orgulho, não sei com que amor.

Os donos de cachorrinho

Postado em 24 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 13 Comentários

Infelizmente não tenho como saber de onde são todas as pessoas que me lêem, aliás, me surpreenderia em saber que são mais do que os dedos das mãos, mas eu sou do Rio de Janeiro, moro e padeço no Rio de Janeiro, só que tenho quase certeza de que o que vou contar agora afeta moradores de várias cidades brasileiras e, quem sabe, até algumas do mundo.

Se você gosta muito de cachorros, pare de ler aqui. Dessa forma você talvez não vai sentir impulso de me xingar depois, se não gosta, se não liga para os au-aus ou se convive com opiniões diferentes, vamos lá.

Pra começar, eu não entendo o que leva alguém a coabitar com um cachorro de grande porte num apartamento, sinceramente, não entendo como alguém consegue conviver com qualquer cachorro num apartamento. Um gato tem sua caixa de areia, solta uns pelos aqui e ali, mas é um bicho ideal para viver dentro de casa, mas cachorro? Cachorros babam litros, tem uma morrinha assustadora, são espaçosos, carentes...

Mas tudo isso é problema de quem deseja conviver com um chafariz de saliva dentro de casa. A coisa complica é da porta para fora.

No meu prédio tem um sujeito que, da portaria, a gente já sabe que ele andou com o cachorro no elevador por causa do fedor que fica. O bicho parece que já morreu e só falta enterrar e o "sem noção" nem liga. Já falaram, pediram, conversaram, reclamaram e todo dia lá está ele, com seu animal que cheira a chorume andando pra cima e pra baixo.

Podem argumentar que esse é um caso isolado ou raro, mas tem mais, sempre tem mais. E quando o indivíduo é dono de um pitbull ou cão-fila, grande, agressivo, amedrontador e teima em andar na rua com aquela fera sem coleira, sem focinheira, sem um tiro de tranquilizante? O mala vai dizer "não precisa ficar com medo, ele não faz nada". É, não faz até o dia que fizer.

Aí ocorrem casos como o de um policial que deu um tiro na cabeça de um desses cachorros que estava atacando uma criança, e o dono do cachorrinho fica indignado, porque o sujeito "matou um pobre animal". Infelizmente o animal errado se deu mal, porque o cachorro pelo menos é irracional, já os donos de cachorrinho são quase irracionais.

Mas supondo que o cachorro não cheire muito mal e nem tenha vocação para atuar naqueles filmes de terror estilo "Vingança dos Dobermanns", sobram as necessidades fisiológicas do bicho, que geralmente são feitas no meio da rua.

Não sei como funciona em todas as cidades, mas no Rio de Janeiro as calçadas são os banheiros dos cachorrinhos. Quando o dono tem alguma consciência, anda com um saco plástico para recolher as fezes e jogar no lixo, o que é bom para a cidade mas torna ao meu ver ainda mais incompreensível o fato de alguém optar por ter um cachorro.

É como se você tivesse que trocar fraldas sujas de cocô o resto da vida, sem que o bebê crescesse nunca. Aliás, é pior, porque o cachorro cresce e você continua tendo que limpar o cocô que ele faz. Eu não consigo imaginar a infâmia do contato, ainda que separado pelo plástico da sacola, da mão da pessoa com aquele monte de bosta quente, recém depositada na calçada. Mas esses são os - poucos - conscientes.

Grande parte dos donos de cachorrinho deixa o presente ali, pra carimbar a sola do sapato de alguém que provavelmente optou por não ter cachorrinho em casa justamente para não ter que conviver com isso. Sem contar que o cheiro da urina fica, já que ninguém leva o seu pastor alemão para passear carregando junto balde, creolina e esfregão.

Finalizo com uma excelente tirada do humorista americano Jerry Seinfeld, que disse que se uma nave espacial chegasse ao Planeta Terra e visse um ser alimentando o outro, dando banho, recolhendo suas fezes, entre outras coisas, os ETs diriam para os cachorros: "levem-me ao seu líder".

Porque chega a ser engraçado quem ainda se acha "dono" deles depois dessa.

Pudim

Postado em 23 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 8 Comentários

Terminavam um almoço durante mais um dia de trabalho, um hábito mantido desde o início do namoro, já há algum tempo. Ela, que se alimentava como uma predadora, já havia terminado a sobremesa, enquanto ele ia metodicamente esculpindo formas em seu pedaço de pudim de leite.

Falaram sobre cinema, sobre o país (ela falou bem, ele mal), sobre o tempo (ela combinando uma praia no final de semana, ele rezando para que o inverno chegasse logo e levasse embora aquele calor horroroso), sobre quase tudo, como aliás era um hábito em seus almoços habituais.

Até que por falta de assunto ou talvez mesmo para variar um pouco o seu jeito blasé, de quem não liga para sentimentos, ela fulminou a pergunta inesperada:

- Quanto você gosta de mim?

Ao que ele, desajeitada e desinteressadamente respondeu:

- Muito.

Ela insistiu:

- Não, muito é relativo. Seu muito pode ser meu pouco ou até pode ser que seja demais, seja mais específico e capriche na resposta, porque sabe-se lá quando eu vou querer falar sobre isso outra vez...

Ele pensou, pensou, logo ele que adorava falar de sentimentos e "discutir relação", naquele dia exatamente estava mais para gato do que para cachorro (quem já teve os dois animais em casa vai entender o que eu digo) e queria apenas terminar aquele delicioso pedaço de pudim, que ele devorava em colheradas calculadas, para que trouxessem sabor suficiente sem no entanto abreviar demasiadamente o prazer.

Sempre poderia pedir outro pedaço, é claro, mas aí a ouviria reclamar dizendo para cuidar da saúde, da forma, enfim, conversa demais só por causa de um pedaço de pudim sobressalente.

Depois de fazer um silêncio cheio de suspense, mas sem nem pensar em fingir que esqueceu o assunto, já que ela estava olhando pra ele com uma cara de criança esperando para entrar numa piscina de bolinhas, ele parou e disse, quase grave:

- Está vendo esse pedaço de pudim que eu estou comendo?

E ela:

- Claro, você está demorando mais nele do que eu demorei para ler Guerra e Paz, o que tem?

- Olhe bem para ele, vê que eu tirei a parte do fundo que fica mais queimadinha, tirei a de cima que fica doce demais e tirei as bordas que a geladeira deixa mais ressecadas do que o meio?

E ela impaciente:

- Sim...

- Notou que eu deixei justamente para o final esse miolo branquinho, macio, que para mim tem um dos sabores mais deliciosos que eu conheço? Percebe como eu guardei esse pedaço para o grand finale da minha sobremesa?

Ela:

- Pergunto sobre nós e você me descreve a anatomia de um pedaço de pudim?

Ele:

- Pois é, se você agora me pedisse esse último pedaço, eu daria tranquilamente para que você o devorasse que nem uma leoa com fome, é isso o quanto eu gosto de você. Meu maior prazer é o seu.

- Então prova e me dá o pedaço...

Ele estende a colher e ela come, de uma vez só.

- Hummm, estava realmente uma delícia. A propósito, eu também te amo.

Pisca o olho e diz:

- A gente se vê depois do trabalho.

Sorri, um sorriso iluminado, dá um beijo gostoso, doce, em sua boca e levanta saindo do restaurante balançando seu rabo de cavalo como se fosse o pêndulo de um relógio de parede.

Ele sorri.

- Garçon, mais um pedaço, por favor?

Brasil? Pelé! Mulata! Favela!

Postado em 22 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 8 Comentários

Dependendo de onde a pessoa nasceu, o lugar passa a defini-la. Já faz muito tempo, mas o Rio de Janeiro já foi cheio de "Pernambucos", "Mineiros" e "Paraíbas". Com o aumento da migração e o ataque do politicamente correto, as alcunhas foram praticamente aposentadas.

Mas experimente alguém vir de Roraima ou do Acre para ver se não se tornará rapidamente "o Roraima" e "a acreana". É que a menos que você seja de lá ou vá morar por algum motivo, vai conhecer mesmo pouca gente desses lugares. E assim também acontece com gente de lugares remotos como Manaus ou de municípios menores, porém de nomes tão exóticos quanto Bofete (SP), Varre-e-Sai (RJ), Ressaquinha (MG), Coité do Nóia (AL), Xangri-lá(RS), Uauá (BA), Nhecolândia (MS), Quincuncá (RN).

Só com muita sorte alguém de um desses lugares não ganhará um apelido referente a eles. Acho que as pessoas só não gostam de brincar com quem vem de Pau Grande (RJ), porque aí o apelido ajudaria a vítima ao invés de caçoar dela.

E isso funciona também em relação aos países do mundo. A menos que o viajante seja do Djbouti ou do Quirguistão, provavelmente haverá algum estereótipo ligado à sua terra que será mencionado quando ele anunciar de onde veio.

Até o Cazaquiatão já tem o Borat pra isso. Se o turista for argentino falarão de churrasco, Evita, Gardel e Maradona, a menos que ele esteja no Brasil, onde falarão de catimba, pouco apreço por tomar banho e outras grosserias disseminadas pela nossa televisão.

Um brasileiro passeando no exterior fatalmente ouvirá a tríade-maldita "Pelé-Mulata-Favela" quando disser de onde veio, o que me deixa fulo da vida, não tanto pelas menções, mas porque eles tem alguma razão em achar que não produzimos muita coisa além de batuque e barracos nos últimos 100 anos.

Mas o que me irrita mesmo é estar em algum lugar e alguém vir me dizer que conhece um "restaurante brasileiro maravilhoso, com feijoada, caipirinha e um sambinha". Sim, claro, como sou brasileiro tenho a mente tão limitada que mesmo na Europa ou nos EUA só consigo me divertir ouvindo batucada e comendo porco esquertejado. Sei que a intenção não é ofender, mas me ofendo mesmo assim.

É como você virar para um americano e dizer "Estados Unidos? Ahhh! Fast-Food! Gente gorda! Malucos que atiram nos outros dentro de lanchonetes!" ou então conhecer um francês e dizer "França? Queijo podre! Desodorante vencido! Não toma banho!".

E tem pra todos os gostos: "Italiano? Mora com a mamma até os 50! Comedor de lasanha! Só fala gritando!" ; "Português? Tamanco! Mulher de bigode! Ceroulas!".

Entendem? Qualquer um acharia isso um saco, menos algum sujerito lá de Pau Grande, que provavelmente iria adorar se alguém dissesse "Pau Grande?Quanto você calça?".

A Festa

Postado em 21 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 4 Comentários

Aquele dia começara com o zumbido do ventilador no seu ouvido que nem uma turbina de avião.

Estava no máximo e ainda assim soprava um ar quente que não aliviava em nada aquele calor de início de verão. Como sempre, desfalecera ao invés de dormir. Estendeu a noite enquanto pode até que o sono veio cobrar sua dívida sequestrando-o para mais uma jornada de sonhos, meios-pesadelos e algumas viagens astrais.

Coisas do Rio de Janeiro, afinal, um dia que começara com esse sol saariano estava se transformando numa tempestade dessas quase bíblicas, que não deixava de causar alguma alegria, afinal, traria consigo algum refresco daquele calor quase insuportável. O verão sempre foi algo bem vindo quando passava toda a sua duração sob os auspícios dos ventos cabofrienses, mas agora que por força de sua maturidade(?) precisava ficar no Rio durante quase todo o seu período, entendeu de uma vez por todas que possui um gene de pinguim.

Hoje este espetáculo de cores, cangas, shorts, biquinis, pulseirinhas e badulaques amarrados e expostos nas meninas que desfilam pelas ruas do Rio traz esse sentimento dicotômico de amor pelo que vê e pavor pelo que sente, ou seja, muito calor.

E como não poderia deixar de ser aquela chuva que lavava a Rua Maria Quitéria e obrigava todos a se espremerem no exíguo espaço do Bar Empório devolveu o sorriso ao seu rosto. Mas ao que pese o alívio do clima, aquilo ali estava chato de doer e resolveu, junto com seus amigos, atirarem-se ao difícil trabalho de encontrar, nesta cidade que vive quase exclusivamente do dia, algo que fazer nesta noite de véspera de feriado.


Nem teve muito tempo de pensar e já se encontrava no meio do barulho quase cacofônico das pistas esfumaçadas da Casa da Matriz. Esse lugar aliás é o resumo perfeito de tudo que ama e odeia: musica boa e musica ruim; bebidas transadas e bêbados, e de algumas coisas que venera, como todas aquelas meninas de roupas moderninhas e penteados estranhos(e lindos) ou de vestidinhos pretos diminutos, as patys rockeiras. Não sabe verdadeiramente o que é mais agradável ao olhar e menos ainda o que é mais perfeito de tocar. Só tem a ligeira impressão que umas preferem o amor enquanto outras querem apenas diversão.

Ficou ali encostado, bebendo uma cerveja enquando saboreava aos goles o olhar de uma menina linda(e infelizmente acompanhada) que sabe-se lá porque resolveu dispensar-lhe aquela atenção gostosa, distante e bruxelante.

Mas como não seria a pessoa que é se flashes do passado e do presente não fluíssem em sua cabeça, tal como as notas dos milhares de rockzinhos indie que faziam as caixas de som e os corpos tremerem num ritmo curioso, começou a pensar na vida ali naquela pista onde era difícil ouvir até o próprio pensamento. Talvez a fumaça da maconha da turma do lado tenha ajudado um pouco essa sua viagem, quem sabe.

O fato é que não conseguiu deixar de lembrar o que acontecia 10 anos atrás (ou até talvez mais), quando começou a frequentar este mesmo tipo de lugar, que sempre fez muito mais a sua cabeça do que aquelas boates de mauricinhos e patricinhas engomados, penteados, perfumados, chatos e mal-educados. Tantas boates diferentes que surgiram e sumiram, tantos nomes escolhidos ou não a dedo para soarem "alternativos e mudernos", mas que não deixaram de fazer história, a sua e a de muita gente que pode viver feliz vendo o início e o fim de muita coisa que foi moda, que passou e algumas que até voltaram.

E não é que ali, naquela véspera de feriado na Casa da Matriz, estava mais uma vez vendo aquele monte de gente que curiosamente, e a despeito de a cada ano ele ficar mais velho, parecia que tinham a mesma idade?! Como sentir como se fosse um ancião com apenas 30 e poucos anos? Simples: tente fazer o que fazia aos 20.

Viu que a juventude é algo que deve ser vivido com a urgência e a reverência de um tempo bom que acaba na mesma velocidade com que eles acendem a luz de uma pista às 6, 7 horas da manhã e pedem "gentilmente" que você se retire da boate.

No fundo a vida é isso mesmo, é experimentar mais, estar feliz só de estar em algum lugar e ver pessoas, ouvir sons, experimentar sensações. Falar, ouvir, beijar, amar, gelar e arder. Isso é viver afinal. E isso é o que o tempo tenta tirar enquanto nos presenteia com a experiência.

E aquela música, aquelas pessoas e até o cheiro da fumaça fizeram muito bem a ele. Diversão mesmo é a eterna tarefa de fazer com que a festa nunca termine. Ela pode até mudar de endereço, pode até mudar a lista de convidados, mas desde que você esteja disposto a vivê-la, ela está ali de braços abertos te esperando. Freepass, Open Bar e tudo.

Não é pra mim, é pra minha filha...

Postado em 18 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 8 Comentários

Outro dia fui ao supermercado comprar alguns materiais de limpeza, já que a faxineira jurou que ia entrar em greve se tivesse que continuar limpando a casa com álcool e sabão de coco e saí de lá levando pra casa também um caminhão de junk food. Só as mulheres vão ao mercado e respeitam a lista de compras, elas são capazes de se descontrolar numa liquidação de sapatos, mas nos corredores do supermercado exibem disciplina espartana.

Se nós homens conseguimos ir num shopping à procura de uma camiseta específica, entrar na loja, comprar a camiseta e ir embora sem dor alguma no coração, as mulheres entram sem procurar nada, compram um biquíni, uma bermuda, um par de sandálias, uma bolsa de praia, bóia de braço pros filhos e ainda saem pensando se deveriam ou não levar o guarda-sol que estava em promoção. Detalhe: tudo isso no inverno.

Agora, se for pra comprar brócolis, alface, queijo de minas e leite, elas saem do mercado exatamente com isso e a chance de um pacote de Bis ou um salgadinho pular no carrinho de compras é ínfima. Já os homens não. Homem sozinho no supermercado equivale à mulher sozinha num shopping center.

Olhe nossos carrinhos e comprove. Chocolates, guloseimas, 200 ml de azeite grego que custa o equivalente a uns 5 litros de um bom azeite comum, pistache, latinhas de cerveja, garrafas de Ice, refrigerantes, amendoins, uma pasta de dente e três maçãs pra desencargo de consciência. Um carrinho de compras assim perdido tem 99% de chances de ser de um homem. Solteiro ou casado, para desespero das esposas.

Deve ser algum resgate, sei lá. Algo que vem da época em que implorávamos às nossas mães que nos deixassem levar pacotes e mais pacotes de Skinny pra casa. Dizem que homens nunca crescem, só os brinquedos ficam mais caros, não é? Algum fundo de verdade tem nisso, afinal, até brincar de casinha custa mais depois, sem contar a despesa que significa dizer "não quero mais brincar".

Advogados de divórcio estão aí para provar o que eu digo.

Mas voltando ao supermercado, eu, por exemplo, adoro comprar produtos que só criança deveria comer. Ninho Soleil, Danoninho, aqueles mini-wafers do Bob Esponja, Toddynho. Sei que ninguém tem nada com isso, mas eu me sinto na obrigação de explicar pra mocinha do caixa que "minha filha adora comer essas besteiras...".

Detalhe: eu não tenho filha e nem filho. Tenho no máximo uma enteada que divide comigo as besteiras sempre que a mãe dela permite. Elas fazem uma troca: comer um bolo Ana Maria se antes comer dois caquis.

É mais ou menos o caso das maçãs que colocamos no carrinho, só que as maçãs geralmente ficam esquecidas até que sobrem só elas na geladeira e tenhamos que devorá-las num ataque de fome na madrugada.

O grande "x" da questão é que infelizmente não inventaram comprimidos que sirvam como sessões de 40 minutos de aeróbica, 100 abdominais ou duas semanas de dieta. E também não inventam uma alface com gosto de lasanha ou um canelone com as mesmas propriedades nutricionais de duas folhas de rúcula.

Aí além de compras de criança precisamos nos tratar que nem criança, é um tal de "vou comer essa caixa de Bis se antes almoçar arroz, feijão, peito de frango e salada", senão me coloco de castigo.

Cornetando as vuvuzelas

Postado em 17 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 3 Comentários

A Copa do Mundo tirou as atenções do derramamento de óleo no Golfo do México, dos aiatolás atômicos do Irã, do desmatamento da Amazônia, do Partido dos Trabalhadores e de outros acidentes e desastres que assolam o Brasil e o mundo. O que interessa nesse momento é o futebol, até para quem detesta futebol durante os quatro anos que separam uma Copa da outra.

Mas como a chateação é uma espécie de bilheteria da diversão, a Copa da África cobrou seu preço através das vuvuzelas, aquelas cornetas de plástico que sopradas sozinhas fazem uma espécie de barulho que deve se assemelhar a uma vaca parindo um filhote de elefante, e juntas a um enxame de abelhas de Itu.

No estádio, milhares de pessoas soando o instrumento sem parar transformam em tarefa hercúlea assistir um jogo de futebol. Jogadores já reclamaram, jornalistas já disseram que atrapalha as transmissões, os turistas que foram assistir à Copa compram protetores auriculares para abafar o barulho, mas a FIFA diz que não proibirá a entrada da corneta porque faz parte da "cultura e tradição africanas". Talvez a intenção seja aquecer o comércio local, vendendo vuvuzelas de um lado e protetores contra vuvuzelas do outro.

Brincadeiras a parte, esse argumento cultural é uma falácia, já que o famigerado instrumento só surgiu na África na década de 1990, um sofisma ridículo que parte do princípio de que qualquer coisa que seja "tradição local" deva ser necessariamente boa.

É algo tão insuportável que alguns meios de comunicação avaliam formas de modificar os ajustes do som das transmissões para diminuir o barulho que vem da torcida, tudo isso por causa da "cultura local" defendida pela FIFA.

Estudos mostraram que uma única vuvuzela durante 22 segundos já excede o limite de decibéis permitidos para locais de trabalho, agora imagine 10, 15, 20 mil delas sendo soadas simultaneamente durante 90 minutos ou mais. É desagradável e inconveniente, a ponto de um shopping da cidade sul-africana de Bloemfontein banir o sopro das cornetas, espalhando adesivos contra as vuvuzelas.

Numa primeira vista pode parecer exagero, mas vamos combinar, uma pessoa que acha "divertido" soprar essa coisa medonha sem parar sofre mesmo de toda a falta de senso crítico necessário para tocar a corneta até dentro de um shopping.

Como disse muito bem o colunista Augusto Nunes, é uma "rendição ao primitivismo". Um instrumento de tortura desses sendo elevado a ícone cultural e os cantos das torcidas, os "Ahhhs!" e "Uhhhs!" no quase-gol, os apupos, os gritos dos jogadores, as palmas, os ensurdecedores silêncios das derrotas, a contagiante alegria das vitórias, o grito de "Gol", tudo isso soterrado sob o som monótono desse desagradável instrumento de tortura musical, na verdade, anti-musical.

Torcer sem sofrer riscos de lesões auditivas é coisa de "elite". Quem é do "povão" e respeita "diferenças culturais" precisa gostar de aporrinhação, barulho, dor de cabeça e, de preferência, algum problema de saúde depois, ainda que seja de saúde mental.

Nos estádios, ao invés das torcidas, um enxame de abelhas inconvenientes. Resta torcer para que a cacofonia dos campos sul-africanos fique apenas na memória da Copa de 2010 e não seja exportada para outros países, inclusive o Brasil, que sediará a Copa de 2014.

E o meu medo é justamente esse, porque tudo o que não presta "pega" no Brasil e sendo assim, aposto que a vuvuzela tem tudo pra "pegar" também. Sabem só o que não pega aqui? Alfabetização e esclarecimento.

O cuco nuclear

Postado em 16 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 1 Comentário

Quem não conhece o bom e velho relógio cuco? Não sei hoje em dia, mas sou do tempo em que todo mundo tinha uma casa de avó para ir que possuía um relógio desses na sala, anunciando com aquele seu tic-tac interminável e toque característicos a passagem das horas.

"Cuco-cuco-cuco!". Eu pelo menos já levei sustos homéricos quando aquilo resolvia piar de surpresa. Quer dizer, surpresa pra mim, que já era enganado pelo tempo que passa mais rápido do que imaginamos, porque para o reloginho eram os mesmos 60 minutos de sempre.

Mas não falo sobre tudo isso para contar histórias de um tempo que não volta mais, ainda que venha falar de atitudes que não têm volta.

O Irã sabidamente está buscando a tecnologia nuclear. 99% do mundo civilizado, clube do qual, aliás, o Brasil parece que resolveu abdicar de seu título de sócio no apagar das luzes do governo petista, acha que a República Islâmica busca o domínio do ciclo do enriquecimento do urânio com fins bélicos.

A ditadura religiosa dos aiatolás, a mesma que diz que o holocausto nunca existiu, jura também que essas intenções bélicas não existem. Pode ser realmente que os iranianos só desejem a energia nuclear para iluminar seus estudos noturnos do Alcorão? Sim, pode. É provável que não seja só isso? Sim, é provável, aliás, é muito provável.

Sabendo disso, o mundo que pensa e onde é permitido pensar resolveu tentar por vias diplomáticas demover o Irã desta idéia, mas não tem obtido muito sucesso na empreitada. Ao que parece o país dos aiatolás não tem pobreza, não tem problemas de saúde pública, não tem problemas até mesmo com a saúde da sua democracia e pode gastar todos os bilhões que ganha vendendo tapete persa para embarcar na aventura nuclear.

E o cuco está fazendo o seu tic-tac. Entre uma rodada de negociações e outra, entre reuniões do Conselho de Segurança da ONU para votar moções de condenação ou mesmo novas sanções, o Irã segue armando-se. Sendo bons alunos de Saddam Hussein, ainda que seus inimigos, os iranianos não cometeram os mesmos erros que o antigo ditador iraquiano cometeu em seu programa nuclear, que foi seriamente prejudicado por um ataque preventivo de Israel.

Suas instalações são espalhadas em diversos pontos do território do país, túneis e abrigos subterrâneos foram construídos com o auxílio tecnológico-humanitário de outro campeão da democracia, a Coréia do Norte, e finalmente, algumas instalações foram colocadas dentro de áreas com grande densidade populacional, para que o povo destes lugares tenha a imensa honra de se tornar mártir compulsoriamente em caso de algum ataque.

Ainda que possua uma defesa antiaérea fraca, o Irã está se reforçando com armas compradas da Rússia. Ainda que não possa lançar uma retaliação em grande escala contra Israel, ninguém duvida que ataques suicidas e com armas de destruição em massa serão lançados de vários pontos do Oriente Médio, vindos de países que os aiatolás alimentam com suas armas e seu dinheiro.

E não é só isso. Hoje, no cenário que se apresenta neste momento, os israelenses não possuem condições logísticas (caças, aviões-tanque, aviões de apoio, entre outros) para sustentar o ataque de várias semanas que seria necessário para destruir completamente o programa nuclear iraniano que já está em avançado grau de desenvolvimento.

O máximo que podem fazer é atrasá-lo, ganhar algum tempo para que alguma coisa possa ser feita e evitar que um regime fundamentalista possua armas nucleares capazes de desestabilizar todo o mundo. Para se ter uma noção do tamanho da ameaça, basta apenas uma bomba nuclear para destruir completamente o pequeno território de Israel.

Sem contar que outros países da região se acharão no direito de possuir essas armas também, como a Turquia e o Egito, por exemplo. Não consigo ver um mundo mais pacífico e seguro enquanto regimes que pregam que a morte é a maior glória e que dezenas de virgens aguardam sedentas pelos mártires no paraíso possuam a capacidade de causar uma destruição de proporções gigantescas.

A situação é clara: ou o Irã interrompe imediatamente seu programa nuclear ou Israel e os EUA, que possuem próxima e privilegiada base no Iraque, devem devem tomar medidas sérias e decididas para interromper o seu programa nuclear. O tempo corre, os aiatolás estão muito próximos de seu objetivo e a cada dia que passa uma ação desse porte torna-se mais difícil e custosa.

O regime islâmico iraniano já mostrou que não tem apreço nem pelo seu próprio povo. Os mortos, os torturados e presos nos protestos oposicionistas contra Ahmadinejad são a prova de que vidas humanas para eles são meros detalhes, afinal, o que importa é a "glória do martírio".

Agradeço imensamente, mas "passo" essa oportunidade "gloriosa" de virar mártir involuntário de uma causa na qual não acredito e nem apóio, e acho que todo o mundo civilizado deve começar a pensar nisso também, antes que o cuco resolva nos dar um susto e que seja tarde demais para voltar no tempo.

Farmácia com "Ph"

Postado em 14 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 5 Comentários

Outro dia, nem sei direito o porquê, senti falta de uma das primeiras loções pós-barba que usei, a Aqua Velva. Aquilo cheirava a "avô" e essa era a intenção, já que existia desde os tempos em que telégrafo era internet.

Fiquei chateado ao saber que pararam de fabricar, porque não tem cheiro igual aquele, uma mistura de salão de barbeiro da década de 40 com malandro de filme sobre bicheiro. Nesse momento me dei conta da quantidade de produtos que existem desde os tempos em que nossa bisavó era debutante e não nos damos conta.

Minha avó achava que Leite de Rosas curava tudo. Desde unha encravada, pequenos cortes, até fazer limpeza de pele, fosse o que fosse e ela dizia para colocar um pouco do líquido em um pedaço de algodão e passar no local. Sei que pra muita gente aquilo tem cheiro de "pobre", mas pra mim tem cheiro de lembrança, tanto que guardo sempre um frasco em casa.

Basta uma ida à qualquer farmácia que encontramos ali um pequeno museu de marcas que sobreviveram à maioria dos seus primeiros usuários. Seiva de Alfazema, Minâncora, Leite de Colônia, Rhum Creosotado, pastilhas Valda, Gumex, Brylcreem, Furacin, Maravilha Curativa do Dr. Humphreys, Emulsão de Scott.

São produtos superados, porém insuperáveis. Pode parecer incoerência essa afirmação, mas se pensarmos bem não tanto.

Para cada ítem que citei, existem produtos mais modernos, fruto de estudos científicos e, principalmente, que funcionam, mas ainda assim toda esta velharia resiste bravamente nas prateleiras e no gosto de um sem número de consumidores.

Cêras e pastas de cabelo, complexos vitamínicos, sprays para garganta, desodorantes roll on com diversas fragâncias, analgésicos cada vez mais potentes, aposto que o sonho dos fabricantes de cada um deles é chegar à idade do Vick Vaporub.

No tempo desses produtos, o importante não era o efêmero, a explosão de popularidade, a viralização. O mais importante era a consolidação, a confiança, o hábito. Vejam vocês que o processo foi tão consistente que até hoje, depois de descobrirmos que o Epocler funciona para conter enjôos menos do que um copo de Coca-Cola, ainda assim tem gente que compra.

E se eles somem de repente, como aconteceu com a velha Aqua Velva Williams, a gente estranha. Ainda que quase ninguém queira mais tomar banho e usar sabonete Senador e depois que sair colocar talco e passar perfume Lancaster, é bom saber que eles continuam por ali, só para o caso de resolvermos depois velhos virar consumidores atávicos.

Festa de Arromba

Postado em 11 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 4 Comentários

Quando somos crianças tudo parece maior. Ao voltar à antiga casa, visitar o primeiro colégio, viajar para onde passávamos férias, percebemos que tudo encolhe depois de lavado pelo tempo.

Digo isso porque já nem sei mais se as minhas festas de aniversário eram as festas de arromba que eu lembro ou se eram apenas festinhas de criança, como qualquer outra que hoje eu levo a minha sobrinha para correr pra lá e pra cá durante algumas horas, se entupir de docinhos e voltar dormindo no banco de trás do meu carro.

Mas aquelas eram minhas festas e tenho direito de lembrar delas como bem entender. Sobra tão pouco lugar para os sonhos quando crescemos, não seria justo invadir até as lembranças de quando os sonhos deixavam pouco lugar para o resto todo.

Naquela época o "ramo de festas infantis" não era um negócio e as mães e avós passavam algum tempo antes da data preparando tudo, cortando, colando, pintando. Depois de escolhido o tema da festa, que variava entre super-heróis, carros, espaço sideral, piratas e outros ícones do imaginário infantil, o trabalho começava.

Lembro da minha avó enrolando brigadeiros e me dizendo que "festa boa sempre oferece água para os convidados, porque nem todo mundo gosta de refrigerante e jamais serve empadinhas, que deixam a pessoa com aqueles farelos espalhados pela cara".

Minha casa virava um ateliê, com isopor, papel camurça, celofane e mais o que você puder imaginar espalhados pra tudo que é lado. E os papéis, colas, purpurinas, tintas íam tomando forma de festa.

No dia, pelo menos que eu me lembre, era uma festa de arromba mesmo. Família, amigos, conhecidos e penetras, sem os quais não existe festa de verdade. Tudo isso em casa, no playground do prédio ou em algum salão de festas alugado em um clube.

Não sei quanto custava, afinal pra quem é criança tudo é de graça e só depende da vontade do pai.

Conto isso porque estava folheando uma revista na sala de espera de um consultório, quando li uma reportagem dizendo para que esquecêssemos os "chapéuzinhos de papelão", pois agora as festas infantis tem "produção de cinema" e podem custar até R$ 100 mil reais, com a média de custo em R$ 20 mil.

Uma das festas relatadas ali chegou a ter convites em formato de claquete de cinema que custaram R$ 5 mil. Imagine, um bom salário mensal só para avisar aos convidados sobre o dia de soprar as velinhas.

Nem quero imaginar o custo dessas velinhas. E assim a breguice dos casamentos emergentes atinge as festas infantis emergentes.

Mas o que me deixa curioso nessa história é que se tudo encolhe com o tempo, se depois de adultos achamos tudo menor do que era na infância, como serão os casamentos desses meninos e meninas que comemoram 1, 2, 3 aninhos em festas de R$20 mil?

Aguardem elefantes, dançarinas do ventre e quem sabe até pirâmides iguais às do Egito.

Pés e Mãos

Postado em 10 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 11 Comentários

Uma antiga reportagem que li uma vez contava que certas celebridades cuidam muito do rosto, mas esquecem dos seus pés, alguns horríveis e mal cuidados, verdadeiro red carpet de joanetes, calos e unhas encravadas.

Poucas coisas dizem mais sobre uma mulher do que seus pés e mãos, reveladoras extremidades. Antes de olhar para trás quando ela passa, conferindo as formas, antes de permitir que o olhar caia como a matéria de uma prova final dentro do seu decote, antes mesmo de avaliar o trópico da sua cintura, prefiro prestar atenção nos seus pés e mãos.

Confesso o crime sem pudor algum. Acho um verdadeiro espetáculo mãos bem feitas, de palmas rosáceas e aparência macia; pés cuidados com dedos em escadinha. E como são reveladores estes detalhes! E também as suas mais variadas combinações.

É muito bonito mãos com cores mais fortes, vermelho, café e até azul marinho. Já os pés ficam lindos de branco, rosa ou até sem cor alguma. Mas se até os pés estão em escarlate, o homem tem todo o direito de imaginar mil coisas, só as melhores, porque isso equivale quase ao aviso de que ela vai se depilar. Não tem como não sonhar.

Até mesmo desleixos caprichados são interessantes, como um pedacinho descascado aqui e ali, simulando que ela nem liga para algo com que tanto se importa. Essa aliás é uma das mágicas típicas da mulher, ser despojada, meticulosa e encantadora, tudo ao mesmo tempo, fazendo com que o homem acredite de verdade que nada daquilo foi sua intenção.

Um sorriso, uma mordidinha no lábio inferior, as mãos passando pelos cabelos, cada gesto vale uma foto, uma captura para eternizar o momento que ela finge que nem existiu.

Assim como encena não ter escolhido um esmalte de cor mais chamativa e um perfume provocante para merecer um elogio em forma de amasso, de beijo molhado, de urgência no elevador. Sou naturalmente observador, gosto de perceber como o caimento de uma pulseira se ajusta à forma do pulso, um anel valoriza os dedos longilíneos, uma tornozeleira evidencia a canela grossa, impositiva.

Uma bela mulher passando é mais eficiente do que 10 oficinas de roteiro, e nenhuma boa história existe sem seus detalhes, sem enredo, sem despertar o interesse do leitor.

Da mesma forma não acredito na beleza do todo, sem a beleza do pouco. Uma pessoa bonita assim o é por causa do olhar, do formato das sobrancelhas, dos pelinhos nos braços, de uma covinha no queixo, de pés que transportem graciosamente e mãos que apresentem o todo ao cumprimentar.

Descobrir a beleza de verdade não é fast-food, é conversa demorada à mesa. Não é refrigerante, é bebida degustada. Não são "os finalmentes" e sim longas, demoradas e quase doloridas preliminares. Quem tem pressa perde os detalhes e quem negligencia os detalhes fica sem saber qual o verdadeiro gosto do todo.

É de manhã que o insone anoitece

Postado em 9 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 5 Comentários

Quer conseguir dormir em 5 minutos? Basta alguém te avisar que você tem um compromisso dali a 10. É mais ou menos como quando viajamos de carro em grupo e o motorista avisa: "agora vou direto até o destino final". Não demora muito e alguém vai sentir sede. E a água que esta pessoa bebeu vai se transformar na vontade de fazer xixi de outro, levando literalmente por água abaixo a intenção do motorista.

O sono é um sacana genioso que cisma em aparecer na hora do trabalho e em brincar de esconde-esconde na hora de dormir. É de manhã que o insone anoitece.

Sei do que falo porque desde cedo já mostrava mais inclinação a ser noturno. A "Sessão de Gala" me parecia bem mais interessante do que a "Sessão da Tarde". À noite os sons são mais seletivos, e os barulhos impessoais do dia são substituídos por rangidos, cantos, guinchos, risos ao longe e até choros abafados, mas todos personalíssimos.

Era delicioso ficar com a janela da sala que dava para a rua entreaberta ouvindo os carros passando lá fora, as conversas ao longe, o vento soprando seu uivo forte, e melhor ainda era a sensação de vulnerável proteção que sentia estando dentro de casa, mas tão perto do que acontecia fora dela.

Mais tarde a noite toma gostos e perfumes para si, ela é o cheiro da gata, o beijo na boca, a vodka que vai incendiando as veias, a música que pulsa junto com o coração. Ela também será a hora da individualidade, com colegas de trabalho longe em suas casas e o marido/esposa dormindo, os livros, a TV ou qualquer outra coisa sendo a companhia que não julga, não pede, não exige.

Até que seja a hora dos choros, das fraldas e da sonolenta contemplação, quando inquietas pestinhas viram anjos de rosto tranquilo, de sonhos sem ambição, de futuros não escritos.

Se passamos um terço de nossa vida dormindo, metade dela vivemos anoitecidos e não há mal algum em dividir esse terço desacordado igualmente entre o dia e a noite, para que possamos viver os dois melhor.

Porque o sono adora contrariar e se perdemos tempo procurando por ele, certamente vai ser bem mais difícil de encontrá-lo. E enquanto não inventarem comprimidos para que passe meu impulso de sair correndo e fugir da rotina, para fazer aparecer ou passar certas vontades, para 40 minutos de bicicleta ergométrica sem sair do sofá ou para uma dieta à base de peito de frango e alface, eu continuo resistindo a usar comprimidos para dormir.

Sei lá, vai que o sono além de genioso vire um viciado e me transforme em seu traficante de ansiolíticos? Prefiro passar a noite dentro da lei, fazendo, no máximo (e com sorte), apenas algumas libertinagens.

Caligrafia

Postado em 7 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 8 Comentários

Quando eu era criança tentava escrever com a letra redondinha e caprichada dos meus colegas de classe. Começava forçando o traço, desamassando minhas letras, tentando ser outro através da caligrafia.

Mas lá pela segunda frase as letras começavam a diminuir de tamanho consideravelmente e os traços amplos e elegantes que tentava copiar iam se tornando um amontoado de letrinhas pequenas, tímidas, como que envergonhadas por serem mera cópia do estilo dos outros, meros garranchos da personalidade.

Quando meus dedos doíam mais do que a vontade de imitar a caligrafia alheia, meus rabiscos voltavam lentamente para dominar as pautas, impondo-se sobre minha vontade de ser igual.

Meus amigos todos faziam letras bonitas, que pareciam saídas direto da máquina de escrever. Mas eu não conseguia escrever como eles, assim como muitos deles também não conseguiam escrever como eu.

Talvez o caos da minha caligrafia fosse mais propício para levar minha mente a imaginar histórias e inventar maneiras de contá-las, talvez aquelas letras não estivessem tortas, mas fugindo, por isso eram tão retorcidas.


Fugiam das partes chatas da aula de geografia para passear pelo Mapa Mundi. Não estavam interessadas na monocultura nordestina e sim no balanço das suas jangadas. Pouco ligavam se a professora de história dizia em qual data o bloqueio continental fora estabelecido, queriam mesmo é saber qual a cor do cavalo branco de Napoleão.

E enquanto verbos, advérbios e pronomes faziam suas ordens unidas gramáticas, elas queriam contar o que o perfume dos cabelos dourados da menina que sentava à minha frente causava, queriam contar que ouro também pode ter cheiro.

Minhas letras possuíam vontade própria, quase como as poesias, que ao contrário do que muitos pensam, não são escritas, mas vão se escrevendo na gente. Inventaram até uma desculpa pro seu suposto mau jeito, que nenhum caderno de caligrafia conseguiu domar.

Do jeito que fazem agora, viajando livres nestas suposições.

Máquina de escrever

Se logo de manhã cedo é a hora do sono, o meio dia a hora da fome, a noite é dos amantes e a madrugada dos insones, o meio da tarde é a hora do tédio. A menos que você esteja de férias e todas as horas sejam de anti-rotina. A pessoa simplesmente de férias é alguém com tempo demais para fazer coisas de menos. Mas aquele que viaja nas férias vai pairar sobre a rotina dos outros achando aquilo tudo divertidíssimo.

Quado viramos adultos, não sentimos saudade do tempo de colégio por causa das aulas de matemática, das explicações do professor de geometria ou de conjugar verbos. Nossa saudade é da hora do recreio e de dois períodos de férias por ano, que batem facilmente a hora do almoço com seus restaurantes a quilo e 15 dias de férias tiradas e outros 15 dias vendidos.

Aliás, deveriam criar uma lei contra vender férias ou então legalizar de uma vez a venda de rins, pulmões e até da alma pro diabo.

Mas voltando ao assunto principal: o tédio vespertino de qualquer escritório que não seja o da National Geographic. Muita gente assiste filmes no computador, outros passam o tempo lendo jornal, enrolam e fingem que estão ocupados e, pasme, existe até quem realmente trabalhe.

Alguns, como eu, começam a procurar coisas para comprar. Seja uma promoção de uma loja virtual qualquer, uma livraria queimando estoque ou os peculiares sites de leilão, o meio da tarde é um molestador de cartões de crédito.



E numa dessas andanças achei uma máquina de escrever Remington, daquelas que viram uma mala, em perfeito estado. A tentação estava incontrolável e na hora pensei: é isso que falta para que eu me torne um bom escritor! Estranha mania de atribuir a objetos uma capacidade de nos conferir qualidades exclusivamente humanas.

Mas quando me preparava para comprar a belezura, um elemento estranho à maioria dos ato de consumo apareceu de surpresa: o raciocínio. Como é que eu iria transferir o que fizesse ali para um arquivo digital? Afinal de contas, até para imprimir algo hoje em dia precisamos do arquivo eletrônico.

Nesses tempos modernos, a porta USB é tão imprescindível para a arte quanto o papel e a caneta, o violão, o piano e até a inspiração.

Eu ficaria cheio de páginas e mais páginas repletas das minhas divagações, loucuras, conjecturas e sarcasmos calculados e não poderia despejá-las praticamente em ninguém. Ficariam ali, presas naquelas folhas, formando uma enchente de idéias no meu quarto e terminariam por me afogar.

Não pude deixar de admirar ainda mais os velhos escritores, que tinham que fazer várias cópias do seu trabalho e entregar em mãos, na arena romana do olho no olho, ou então depender dos correios para que chegassem aos editores e depois depender dos editores para chegar às livrarias e, finalmente, destas para chegar aos leitores. Eram verdadeiros heróis, ainda que só quisessem ser lidos.

Cheio de admiração por eles, desisti de comprar a Remington e continuar escravo da tecnologia. Não quero ser herói, quero apenas que me leiam.

Pequenos Mundos

Postado em 4 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 12 Comentários

Ele fica ali abandonado na prateleira, mais um dentre tantos livros. Testemunhas silenciosas da nossa preguiça de saber, até que um dia resolvemos pegá-lo e começamos a desvendar aquele enredo que estava alheio à nós, acontecendo sem parar nas suas páginas fechadas.

Um livro só acontece quando é lido? Não. Ele está ali, como a cidade em que vivemos quando crianças, que em nossa ilusão egoísta ficou parada no tempo, nos esperando voltar, mas que para nossa surpresa continuou vivendo sem que tomássemos ciência do que se passava.

Os livros também são assim. Romeu continua amando Julieta, a Segunda Guerra continua sendo travada em suas páginas dia a dia, os microcontos de Carver formam cidades e bairros vivos e enfileirados em nossa estante, os carros passam, casais fazem sexo enquanto o vizinho espiona com uma luneta, as crianças correm nos pátios dos colégios, as tempestades caem, a história acontece. Tudo ali, independente da nossa vontade, num canto da nossa sala, vivo e pulsante.

E quando finalmente abrimos suas páginas, o que fazemos é tão somente pular naquele universo em movimento, tomar parte como observador do que já acontecia. Sentimos os cheiros, nossa boca se enche d'água com os gostos, nos tornamos rivais do protagonista em sua paixão pela bela morena de olhos verdes tão ricamente detalhada, viramos amigos do velho da casa em frente, que narra a história deliciosamente.

As páginas correm depressa, nem vemos o tempo passar. Chega a lembrar a vida nesse ponto. Mas ali somos apenas turistas, observadores convidados pelo autor a viver aquele pedaço de tempo que estava na sua cabeça, secção de um todo que ele resolveu compartilhar.

Quando o fim se aproxima, quando nossa mão direita já tem poucas páginas para segurar, quase sentimos raiva dele por estar sutilmente nos avisando que nosso visto de permanência está expirando. Tentamos segurar as páginas como fazemos com os dias, na eterna luta contra o tempo, e tal qual nesta perdemos no fim e vemos que tudo passa.

Sobra a saudade dos amigos que fizemos em cada linha, da intimidade que conquistamos ali pelo segundo ou terceiro capítulo e a certeza de que tudo vai parar quando finalmente lermos as três letras na última página.

A sensação de abrir outro livro logo em seguida, de entrar em outro mundo, outro continente, cidade ou país é quase de traição. Como trocar de amigos assim tão levianamente? Mas aqueles de antes já não nos esperam, assim como a cidade de nossa infância continuou a crescer e mudar depois de nossa partida. A história continua ali, se repetindo. A vida continua ali, acontecendo.

Sobra para nós a mesma coisa que as experiências da vida nos deixam: conhecimento. A mesma sabedoria que tanto na prateleira quanto na vida, temos estranha preguiça de perseguir.

Traduções tenebrosas

Postado em 2 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 2 Comentários

Outro dia estava vendo TV e a personagem disse algo como "I´m tired of waiting for a ring and decided to give a ring myself", algo como "Cansei de esperar que me ligassem e resolvi eu mesma ligar". O tradutor, obviamente querendo enfeitar o pavão (decorate the peacock), resolveu partir do princípio que "ring" seria um "anel" (de noivado) e colocou assim na legenda "Cansei de esperar pelo príncipe encantado".

Esse tipo de tradução tenebrosa é corriqueira. Certa vez ouvia uma rádio e o locutor anunciou, todo animado, que iria tocar um "grande sucesso de Morrissey, 'Suedehead', cabeça suada".

Na verdade o termo suedehead, traduzido literalmente como "cabeça de veludo", serve para identificar quem corta o cabelo bem baixo, dando a aparência de um veludo. Mas nosso "tradutor" achou que era suor.

É difícil transportar piadas, termos e expressões de um idioma para outro. Eles às vezes são frutos de situações do cotidiano próprias de um lugar e viram algo sem pé nem cabeça se traduzidos. Existe um livro muito engraçado chamado "The Cow Went To The Swamp" (A Vaca Foi Pro Brejo), do Millôr Fernandes, que faz uma brincadeira com essas situações, como dizer que "rodar a baiana" se transformaria numa incompreensível e engraçadíssima tradução como "To whirl the old woman from Bahia".

Mas de certo modo o contrário também acontece. Existem letras de músicas que soam maravilhosas em inglês, mas se traduzidas para o português se tornam verdadeiros monumentos ao horror. Eu acho que rock'n'roll por exemplo foi inventado para ser cantado em inglês, assim como rap. Até gosto de músicas nesses estilos em outros idiomas, algumas até não saem do meu iPod, mas quando compostas e cantadas em inglês parece que "combinam" mais.

Tomemos como exemplo outro grande sucesso de Morrissey, desta vez com os Smiths, "The Boy With The Thorn In His Side", que traduzido literalmente vira um ridículo "O Garoto Com o Espinho em seu Flanco", o que com algum trabalho de interpretação vira "O Garoto Eternamente Atormentado". O sentido fica melhor, agora tente cantar isso...

Imagine o Sting cantando no The Police (A Polícia) um refrão repetitivo como "Mensagem na Garrafa...Mensagem na Garrafa...". Eu acho um desastre.

Conheço algumas músicas de sucesso em outros idiomas que, se traduzidas para o português, só serviriam para serem cantadas por grupos de pagode-cornudo ou por esses artistas que vendem CDs em barraquinhas de rodoviária.

Mas a sonoridade e muitas vezes a benção de não entender o que é dito ali fazem com que nos concentremos na melodia e aí a música cai bem. Só fico na dúvida se nos seus países de origem todo mundo é meio brega, se as referências culturais são tão diferentes a ponto daquilo tudo ser aceitável ou se eles são o equivalente aos "cantores populares" daqui.

Nem vou falar de nomes de filmes, que os distribuidores nacionais parecem ter compromisso em tornar algo totalmente diferente do contexto original. Isso chega a ser assunto para um outro post.

Ainda assim Sebastian é melhor do que Sebastião. Assim como pedir uma t-bone steak é mais simpático do que bisteca (que parece biscate). Outras coisas nem ousamos traduzir como milk-shake, frozen yogurt e mouse.

Nossos primos portugueses não tem tanto pudor e chamam o periférico de "rato" mesmo. Mas eles não são parâmetro já que traduzem até nomes próprios, como o da rainha Elizabeth II, que em Portugal é chamada de "rainha Isabel" e seu filho e herdeiro de "príncipe Carlos".

Creio que o melhor é um meio termo entre o bom gosto e a identidade cultural do país. Não precisamos ser tão radicais a ponto de chamar download de "descarga", mas também não precisamos ser uma Barra da Tijuca, onde as pessoas compram remédio na drugstore, carnes na butchery, tomam café numa bakery e chamam até rosquinha de polvilho de donut.

Porque se for desse jeito eu acabo mudando o nome do blog para Against the Flow.

A flotilha da paz

Postado em 1 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius 7 Comentários

No último dia 31 de Maio uma ONG (sempre elas) chamada Free Gaza organizou uma flotilha com 6 embarcações com intenção de furar o cerco à Faixa de Gaza e levar ajuda humanitária. Israel abordou essas embarcações para não permitir que chegassem ao seu destino e, durante a luta que ocorreu, o saldo foi de 10 mortos, 25 feridos e 600 pessoas detidas.

O mundo em peso condenou a ação israelense, ocorreram protestos em várias cidades e rapidamente países anti-americanos e anti-israelenses como Irã e Venezuela et caterva apareceram para dizer o já conhecido "eu avisei", como se aquilo tudo fosse a confirmação de que eles são o "bem" na eterna luta do bem contra o mal.

Confesso que não concordo com o embargo à Gaza. Não que eu considere digno de interlocução um governo liderado pelos terroristas do Hamas, mas simplesmente porque acredito que a pobreza, a ignorância e principalmente, a desesperança, são insumos para o extremismo e o terrorismo. Aquela gente passando fome, sem direitos básicos, sem possibilidade de planejar qualquer coisa no futuro só tem um sentimento: o ódio. E o ódio reprimido leva qualquer um a fazer coisas que não faria normalmente.

Mas entendo também o chanceler de Israel, Avigdor Lieberman, homem prolixo e fértil em dizer asneiras que incendeiam ainda mais a fogueira do conflito árabe-israelense, mas que está coberto de razão quando diz que Israel já cedeu mais territórios aos palestinos do que os que ainda sobram para serem devolvidos, e ainda assim o conflito só piorou.

A Faixa de Gaza foi devolvida aos palestinos integralmente, até os famigerados assentamentos foram retirados, mas ainda assim ela serve como plataforma de lançamento de foguetes palestinos contra as cidades israelenses próximas.

Durante as conferências em Camp David, foi oferecida aos palestinos a devolução total de Gaza e da Cisjordânia, além de Jerusalém Oriental como capital do seu estado independente. Eles recusaram, porque queriam também a volta de exilados que estavam em outros países.

A cada concessão, nova exigência. Porque isso? Simples, porque toda essa luta palestina gera fundos de ONGs e governos estrangeiros, que enriquecem os líderes daquele povo, enquanto seus liderados são mantidos na miséria.

Mas não existe ninguém totalmente "bonzinho" ali. Israel faz questão de alimentar seus críticos e detratores com medidas impopulares, inumanas e truculentas. Um muro que cerca a Cisjordânia e ajudou a impedir ataques suicidas espertamente tungou 10% do território palestino. A cada foguete caseiro lançado contra o país, as Forças de Defesa de Israel (IDF, em inglês) lançam ataques poderosíssimos, que deixam um rastro de mortes.

Postos de controle que garantem a segurança interna também infernizam o ir-e-vir dos palestinos. Sem contar o fato de ser a única democracia real do Oriente Médio e ainda assim conviver com a incômoda realidade dos campos de refugiados.

Tudo isso dificulta a tarefa de quem deseja defender Israel no campo das idéias, porque à primeira vista o país faz muito para justificar a cota de ódio da qual é objeto.

Mas aí eu lembro que em países islâmicos sem ocupação alguma, o povo é oprimido por seus próprios governantes do mesmo jeito. Irmãos atacam irmãos, pais tratam suas filhas como animais, sociedades criam monstros como os Talibãs, enviam terroristas para atacar pessoas do outro lado do mundo com a simples justificativa de que são "infiéis". E tudo isso sem ocupação alguma que justifique tanto ódio, tanta violência.

Convenhamos: não existem terroristas israelenses explodindo bombas em metrôs. Eles usam violência exacerbada em várias ocasiões, mas o fazem na intenção de defender seu país de pessoas que afirmam para quem quiser ouvir que seu objetivo é "destruir Israel, varrer o país do mapa e jogar os judeus no Mediterrâneo".

Não existem israelenses surrando mulheres porque saíram às ruas sem usar um véu e também não vemos um presidente ou premier israelense há tanto tempo no cargo quanto os presidentes do Egito e da Síria, os aiatolás iranianos ou o "comandante" Fidel.

Numa equação simples, numa escolha entre o preto e o branco, eu tendo a dizer que preferiria muito mais ser um israelense a ser um cidadão de qualquer outro país árabe, pelo simples fato de que, em Israel, as pessoas possuem dois ítens raros naquela região tão rica em petróleo: liberdade e democracia.

Mas chega a ser uma pena que um povo que sofreu tanto durante a Segunda Guerra não tenha a sensibilidade de poupar alguns inocentes de tanto sofrimento, de evitar assim que se criem cobras que tentarão mordê-los mais adiante, e que forneçam tanta munição para extremistas, autoritários e terroristas nessa "guerra ideológica".

O problema é que por mais concessões que Israel faça, o país jamais poderá dar aos palestinos e ao mundo árabe o que estes realmente desejam que é a sua destruição. E ninguém pode exigir de um povo que este se ofereça ao sacrifício em nome de qualquer coisa, nem mesmo da paz, porque isso não seria paz, seria rendição.

Chego a conclusão de que o homem, o ser-humano, não deu muito certo.
 
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