O mesmo ano todo dia

Postado em 29 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius

Acordavam todos os dias sob o peso seguro da rotina. Mal se olhavam, mal se viam, ocultos sobre tanto mesmo. E assim passava o tempo, assim passavam-se os meses, os anos, que só não passavam desparcebidos por causa do ritual mecânico, seguro, rotineiro do dia 31 de Dezembro.

Mas, não fosse por isso, os anos seriam dias, de tão iguais. O mesmo ano acontecendo todo dia.

A rotina, ou melhor, a mesmice, é como um monte de terra que a pessoa vai colocando sobre si. Até um certo momento, aquilo é voluntário, reversível. A partir de um ponto, que não sabemos muito bem qual é, torna-se compulsório. O peso é maior do que a nossa vontade de retirar tudo de cima, e só nos resta continuar depositando ali, grão em grão, resignadamente, aquela terra que terminará nos matando.

É assim, grão em grão, que casais acordam um dia mal se olhando, grão em grão, mal se falando, grão em grão, mal se desejando. É assim, grão em grão, que nossa juventude vai embora, levando na sua grande bagagem sonhos e, mais do que sonhos, esperanças e, mais do que esperanças, nosso sopro de vida.

Nos tornamos a conta não paga, a academia faltada, a TV ligada. Nos tornamos o beijo não dado, o encontro não marcado, o coração que só não desliga de sua função mantenedora de vida, vida quase vazia, quase cheia, vida quase.

O cheiro gostoso do feijão fresco, que lembra nossa infância, o filme recém-lançado, o doce da confeitaria predileta, uma dose de bom whisky. A fumaça do cigarro, que dança quando a sopramos. A fumaça do café, que dança e acaricia. O cheiro do perfume, o gosto do nada presente em nossos pequenos gostos, em tudo aquilo que usamos para nos definir, já que todo o resto da nossa vida não nos define.

E vem a hora do almoço, o dia chega ao meio, cada garfada levada à boca traz consigo tudo aquilo que engolimos junto com a comida, nossos sentimentos contidos.

O riso, o lamento, o choro, a epifânia, cair na real. Passamos a maior parte da vida entre sentimentos mornos, porque julgamos que nosso coração, nosso corpo e nossa mente não teriam resistência suficiente para viver mais vezes nos extremos.

E assim resistimos ao extremo do não sentir. Do sorriso contido, da alegria calculada, do choro preso, da gargalhada abafada, dos amores desperdiçados, sempre de olho no passado. Dez, vinte, trinta vezes nos machucam, porque deixar que façam isso outra vez? Porque deixar que alguém, quem sabe, nos surpreenda?

Ele é assim mesmo. Ela é assim mesmo. Eu sou assim mesmo. Porque mudar? Porque oferecer-se e ofertar algo diferente, se o mesmo dá certo? Dá certo? Dá mesmo? Então pensando nisso, você agora sorri um sorriso de graça? De afirmação? De ironia? Ou de resignação? Ou não sorri sorriso algum?

Mas já é noite, ao voltar para casa quase desejamos a felicidade descompromissada do velhinho que assobia velhas canções ao nosso lado, rosto vincado, moreno, cabelos muito brancos e aquela tranquilidade de quem já amou todos a quem deveria amar, já sofreu por todos por quem deveria sofrer, soprando música do peito, como quem não precise mais que o amem, o desejem, o necessitem.

E ao chegar, o boa noite trocado mecanicamente é levado embora no banho, descendo pelo ralo junto com a água e mais um pouco de você. Um redemoinho de poeira, espuma e urgências.

Beijos, gemidos, suor, fluidos. Excelente filme, meio pornô para o horário, mas muito bom. É hora de ir para a cama.

E mal se olhando, mal se vendo, ocultos sobre tanto mesmo, puxam sobre si o cobertor da noite, dormindo todos os dias sob o peso seguro da rotina.

1 Comentário:

Cissa postou 30 de junho de 2010 às 08:24

Ah... que texto mais lindo sobre a acomodação humana. Somos tão medrosos que muitas vezes precisamos da rotina para "sobreviver" (nos proteger)... e não vivemos de verdade. Quem sabe, tendo o desprendimento para sempre refletir, criticar e reavaliar nossos passos, atitudes, sentimentos e decisões, conseguissemos assim olhar para nós mesmos e nossas vidas como se estivessemos "do lado de fora" tornando-nos mais sinceros com nossos desejos e idéias e aproveitando melhor este "tempinho" que nos cabe neste mundo. Somos seres inifintamente mutantes, evoluímos, crescemos... mudamos... Lindo texto Marcus..

 
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