Pudim

Postado em 23 de jun. de 2010 / Por Marcus Vinicius

Terminavam um almoço durante mais um dia de trabalho, um hábito mantido desde o início do namoro, já há algum tempo. Ela, que se alimentava como uma predadora, já havia terminado a sobremesa, enquanto ele ia metodicamente esculpindo formas em seu pedaço de pudim de leite.

Falaram sobre cinema, sobre o país (ela falou bem, ele mal), sobre o tempo (ela combinando uma praia no final de semana, ele rezando para que o inverno chegasse logo e levasse embora aquele calor horroroso), sobre quase tudo, como aliás era um hábito em seus almoços habituais.

Até que por falta de assunto ou talvez mesmo para variar um pouco o seu jeito blasé, de quem não liga para sentimentos, ela fulminou a pergunta inesperada:

- Quanto você gosta de mim?

Ao que ele, desajeitada e desinteressadamente respondeu:

- Muito.

Ela insistiu:

- Não, muito é relativo. Seu muito pode ser meu pouco ou até pode ser que seja demais, seja mais específico e capriche na resposta, porque sabe-se lá quando eu vou querer falar sobre isso outra vez...

Ele pensou, pensou, logo ele que adorava falar de sentimentos e "discutir relação", naquele dia exatamente estava mais para gato do que para cachorro (quem já teve os dois animais em casa vai entender o que eu digo) e queria apenas terminar aquele delicioso pedaço de pudim, que ele devorava em colheradas calculadas, para que trouxessem sabor suficiente sem no entanto abreviar demasiadamente o prazer.

Sempre poderia pedir outro pedaço, é claro, mas aí a ouviria reclamar dizendo para cuidar da saúde, da forma, enfim, conversa demais só por causa de um pedaço de pudim sobressalente.

Depois de fazer um silêncio cheio de suspense, mas sem nem pensar em fingir que esqueceu o assunto, já que ela estava olhando pra ele com uma cara de criança esperando para entrar numa piscina de bolinhas, ele parou e disse, quase grave:

- Está vendo esse pedaço de pudim que eu estou comendo?

E ela:

- Claro, você está demorando mais nele do que eu demorei para ler Guerra e Paz, o que tem?

- Olhe bem para ele, vê que eu tirei a parte do fundo que fica mais queimadinha, tirei a de cima que fica doce demais e tirei as bordas que a geladeira deixa mais ressecadas do que o meio?

E ela impaciente:

- Sim...

- Notou que eu deixei justamente para o final esse miolo branquinho, macio, que para mim tem um dos sabores mais deliciosos que eu conheço? Percebe como eu guardei esse pedaço para o grand finale da minha sobremesa?

Ela:

- Pergunto sobre nós e você me descreve a anatomia de um pedaço de pudim?

Ele:

- Pois é, se você agora me pedisse esse último pedaço, eu daria tranquilamente para que você o devorasse que nem uma leoa com fome, é isso o quanto eu gosto de você. Meu maior prazer é o seu.

- Então prova e me dá o pedaço...

Ele estende a colher e ela come, de uma vez só.

- Hummm, estava realmente uma delícia. A propósito, eu também te amo.

Pisca o olho e diz:

- A gente se vê depois do trabalho.

Sorri, um sorriso iluminado, dá um beijo gostoso, doce, em sua boca e levanta saindo do restaurante balançando seu rabo de cavalo como se fosse o pêndulo de um relógio de parede.

Ele sorri.

- Garçon, mais um pedaço, por favor?

8 Comentários:

Anônimo postou 23 de junho de 2010 às 05:24

Relacionamentos tem dessas coisas e ele se saiu bem.! Nada como responder demonstrando com exemplos.!

Bjos ú&e =***

André Luís postou 23 de junho de 2010 às 08:01

KKKKK. Mulher é foda nê? Deixar elas saírem vencedoras não custa nada, é fácil para quem sabe.
Elas também fazem o mesmo, perder é ganhar, se o fazemos intencionalmente, para mantermos o equilíbrio. É fácil quando se sabe.

Cristiane postou 23 de junho de 2010 às 08:01

E veja só que o moço ácido também me comove com seus textos!
Beijo enorme!
@cristianesita

Stella Soares postou 23 de junho de 2010 às 08:19

Putz, e não é que ela comeu!...hahahaha...

Unknown postou 23 de junho de 2010 às 09:31

Como ela disse, tudo é relativo e o parâmetro que ela tinha naquele momento era o último, o delicioso pedaço de pudim. Seria esse o parâmetro dele também?
Whatever, o que seria dos romances se não existisse ilusão e o que é a ilusão senão a nossa vontade de acreditar no que nos faz feliz?
Abraços,
Cláudia

Lucia Valle postou 23 de junho de 2010 às 09:33

Faço minhas as palavras da Cristiane: nem só de ironias vive o nosso moço, mas de emoções também! Bela crônica!
@LuciaValle

Sil Villas-Boas postou 23 de junho de 2010 às 20:40

O personagem demonstrou sabedoria e esperteza. Adorei a saida de mestre dele. Valeu a leitura.
Bjuss
Silvana

@bocadelata postou 29 de junho de 2010 às 22:02

Não necessariamente precisava do poder, achar que o tinha já era os suficiente.

 
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