Tudo que eu até seria se não fosse eu

Postado em 4 de out. de 2012 / Por Marcus Vinicius

Nasci no Rio de Janeiro, fui um excelente aluno na escola, jogava no time de futebol do bairro e sempre adorei calor. Surfava em Santa Catarina nas férias, nunca precisei fazer dieta e aprendi a falar inglês em seis meses, tal qual prometia a propaganda do cursinho.

Namorei a Ana Flávia, aquela loira de olhos azuis e cara de cheerleader de filme americano e só terminei com ela porque me mudei com a família para a Flórida, onde conheci a Katie, uma morena de olhos puxados com cara de índia de filme brasileiro. Terminei com ela quando voltei para o Brasil e preferi ficar sozinho um tempo me dedicando a mim mesmo.

Entre a vontade do meu pai de que eu fosse engenheiro e a da minha mãe de que fosse designer de interiores, escolhi ser arquiteto. Comunicação, jornalismo ou ciências sociais jamais passaram pela minha cabeça, pelo menos não enquanto eu estava preocupado em passar no concurso para o Banco do Brasil, a Petrobras e o TRE.

Escolhi o que me permitia conciliar estudo e trabalho, sem que eu negligenciasse o treino diário na academia e as corridas no final de semana. Antes de me formar, tirei um ano para fazer um mochilão na Europa.

Consumi vinho francês, paella espanhola e garçonetes suecas. Fiz um monte de amigos e voltei praticamente irmão de um herdeiro do petróleo do Qatar. Depois dei uma fugida até a India onde os garotos subindo em árvores para pegar frutas me lembravam a infância, quando subia para pegar jaboticabas no pé.

Nunca tive ansiedade, nunca senti ciúme, nunca chorei por dor de corno, nunca tomei um porre que me fizesse perder o controle e vomitar no pé de alguém. Pra te ser sincero, nunca me lembro de ter sequer ultrapassado um sinal vermelho.

Quando chegou a hora, me casei. Depois de me formar e receber duas promoções no emprego, claro, com direito a viagens de negócios para Dallas, Estocolmo e Lisboa.

E sentado nessa varanda de frente para o mar lembro exatamente que tivemos filhos na hora de ter filhos. Todos na escola foram excelentes alunos. Jogavam no time do bairro, adoravam calor e surfavam nas férias em Santa Catarina. Nunca precisaram fazer dieta e também aprenderam a falar inglês em seis meses, tal qual prometia a propaganda do cursinho.

O resto da história deles acho que você já desconfia. Com a diferença que eu queria que fossem médicos e a mãe, veterinários. Resolveram ser psicanalistas.



Nunca traí e nem me senti tentado, ainda que tenha trabalhado com mulheres tão gostosas quando a Jennifer Lopez, sensuais como a Angelina Jolie e loiras como a Marilyn.

Nunca soneguei imposto, nunca reclamei do país, sempre mantive uma postura positiva até nos maiores problemas, inclusive quando tive uma dor de barriga durante um apagão no metrô. Sim, sim, eu tenho dor de barriga de vez em quando, basta que exagere demais no suco de clorofila e na pizza de rúcula.

Não te contei? Minhas comidas prediletas são alface, cenoura, brócolis e rúcula. Nunca entendi essa paixão das pessoas por chocolate, pra te ser sincero, não sinto a menor vontade.

Nem de chocolate e nem de café, ou cerveja, ou batata-frita ou de socar alguém de vez em quando (e olha que sou faixa preta de jiu-jitsu e karatê).

Deve ser porque sou muito equilibrado, maduro e quase sem dúvidas sobre nada, mas nem por isso fico por aí esfregando meu sucesso na cara dos outros, afinal, também sou um sujeito humilde.

Sei liderar e ser liderado, não grito com os outros, não sou egoísta e nem babaca a ponto de me tomarem o que é meu, enfim, nem uma balança digital é tão precisa quanto eu sou com meus sentimentos. Faço caridade, sei pintar, sempre votei em todas as eleições e faço mutirão de conservação da pracinha perto da minha casa.

Envelheci com dignidade. Não tentei esconder as rugas, não fiquei com medo do tempo passando, não procurei bancar o garotão em busca do tempo perdido, muito porque não perdi tempo algum. Sempre vivi como um cronômetro, tudo na hora e no tempo certo.

Nasci no tempo certo, cresci no tempo certo, casei no tempo certo, tive filhos no tempo certo, netos no tempo certo, tudo de acordo com o que as pessoas esperavam de mim, mas agora estou com um problema.

O primeiro de todos é que eu não existo, é lógico. Sou apenas a soma de tudo o que o mundo espera de cada um de seus bilhões de habitantes, que passam a vida tentando corresponder à essas expectativas enquanto se entopem de emagrecedores e Prozac, mas ainda assim, caso eu realmente existisse, provavelmente teria excelente saúde, disposição e lucidez, e sempre que descobrissem que eu estou com 100 anos e ainda jogo futebol aos sábados, me diriam:

- Nossa, isso tudo!?

Como se a sociedade esperasse que eu cumprisse o tempo certo até para morrer.

A dúvida é: teria que me matar para não decepcionar ninguém ou só mentir e me fingir de morto?

4 Comentários:

Anônimo postou 4 de outubro de 2012 às 10:03

Como assim não existe? Vejo vários sujeitos assim todos os dias no facebook.


Luiz Fernando

mvsmotta postou 4 de outubro de 2012 às 10:06

Pior que é verdade, viu? Rsrsrs.

Abração!

Roberta Ricchezza postou 4 de outubro de 2012 às 14:51

Achei q só eu pudesse ser assim se eu não fosse eu.

nadja postou 8 de outubro de 2012 às 08:08

Olá Marcus, passados quase doze meses desde meu último e único contato, expresso novamente meu contentamento com suas divagações...mantenha o equilíbrio pois ele é contagiante...saudações de BH.abçs. Dri

 
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