De onde viemos?

Postado em 23 de set. de 2010 / Por Marcus Vinicius

"Não possuo, como deveria, a alma dentro do corpo, mas sim o corpo dentro da alma!"

Posso me considerar uma pessoa de sorte. Afora uma infância feliz, uma juventude plena e algumas conquistas pessoais, pude conhecer bem duas bisavós - uma faleceu quando eu tinha 13 anos e a outra quando tinha 17 - por isso suas lembranças são vívidas em mim, não um mero borrão de um passado distante, mas lembranças de uma convivência intensa.

Uma delas morava num sobrado no bairro carioca de Vila Isabel. Fazia um bife acebolado que nunca mais comi igual e era uma portuguesa forte, altiva, severa e, no entanto amorosa. Nunca houve amor maior do que o que ela dedicou a cada um dos seus sete filhos, numerosos netos e bisnetos.

A outra morava na cidade de Vassouras, terra de barões do café e de muita história. Era uma senhorinha magra, de olhos vivos e com uma beleza que apesar de seus quase oitenta anos teimosamente se mostrava através do olhar, do queixo bem feito, do sorriso ainda moço.

Por isso foi grande a surpresa ao descobrir que os versos que abrem este texto são de autoria de uma das irmãs dessa minha bisavó - com olhos incrivelmente iguais aos dela - a escritora Cinira do Carmo Bordini, ou simplesmente Carmen Cinira. Minha tia-bisavó, se é que isso existe.

De vida meteórica - morreu aos 31 anos - ela foi ao mesmo tempo linda e trágica, encantadora e triste. Contraiu tuberculose cuidando do marido, famoso jogador de futebol na época, que caíra doente - grande amor de toda a sua vida.

Viúva aos 20 anos, o escritor Humberto de Campos, que a conheceu, descreveu-a assim em uma de suas crônicas, após um encontro na Academia Brasileira de Letras: “Morena, grandes e profundos olhos turcos, de veludo negro, trazia nos traços e, nessa tarde, no vestuário, os atributos de uma jovem princesa oriental. Toda ela era graça infantil e atordoada, de borboleta que acaba de sair da crisálida e penetra num rosal, tonta de sol e em luta com o vento da manhã primaveril.”

Os mesmos olhos da minha bisavó

Esteve muito à frente de seu tempo, era independente e através de sua arte desafiou as convenções que "condenavam a mulher a ruminar seus sonhos de amor em silêncio", solidarizou-se com "aquelas que lutam, que trabalham, que se esfalfam por um lugar ao sol, no grande labirinto das competições, das reivindicações nobres e justas",  tornando-se inesquecível pela força do seu talento.

E apesar de ser mulher, o que não era necessariamente algo facilitador para uma escritora no início do Século XX, e de ter falecido tão cedo, deixou quatro livros publicados: Crisálidas, Primeiros Vôos, Grinalda de Violetas e Sensibilidade, todos fora de catálogo, só sendo encontrados em sebos e lojas de livros raros.

Sua obra, no entanto, tem tamanha força que basta procurar pelo seu nome na internet que é possível achar vários de seus poemas. Já após sua morte, o médium Chico Xavier psicografou textos que supostamente são de autoria de Carmen, o que não é de todo impossível, visto que uma alma tão inquieta assim jamais se vai completamente.

Um de seus amigos, no prefácio de "Sensibilidade" - seu último livro, só publicado após sua morte - dizia que nunca vira olhos tão lindos e que chorassem tanto. Em seu último poema - simplesmente intitulado "Vida" - já doente, ela dizia: "Vida, que és boa para tanta gente, E a tanta gente embriagas de prazer Para mim foste má, foste inclemente, E deixaste-me exausta de sofrer!"

Incrível que ainda hoje uma escritora que morreu no início do século passado, após uma vida tão breve, ainda possua fãs que são netos e bisnetos de seus contemporâneos e a despeito de tudo o que sofreu em vida, tenha deixado obra tão rica de beleza.

Descobrir um parente desses não é coisa que acontece todo dia. Grata descoberta essa de saber de onde viemos.

12 Comentários:

Rosa Magalhães postou 23 de setembro de 2010 às 11:05

Há 3 anos descobri que meu avô "de criação" deu nome a uma rua na periferia de João Pessoa. Estive lá, tirei fotos. Uma coisa tão simples, mas que me trouxe de volta os ares da infância, do avô negro, tenente austero e ao mesmo tempo tão doce, e que tanta falta me faz!

Adoro histórias de família, essas coisas que remetem a momentos bons, a pessoas inesquecíveis. Tão bonita a moça da foto, viu?

Bjs.

Pati Georg postou 23 de setembro de 2010 às 11:06

Adorei.. Um texto bem diferente dos que eu costumo ler aqui!

mvsmotta postou 23 de setembro de 2010 às 11:07

Rosa,

Ela era linda mesmo, apaixonante, não é?

Pati,

Também tenho um lado bom. :P

maria de lourdes postou 23 de setembro de 2010 às 11:12

Belo texto. "Descobrir um parente desses não é coisa que acontece todo dia". Parabéns.

Marise postou 23 de setembro de 2010 às 11:38

*Há algum tempo procuro livros de Carmen Cinira, impulsionada pelas histórias que minha avó, sua irmã, me contava a respeito e de como foi ao mesmo tempo linda, rica de emoções e sofrida sua passagem por este mundo.
Tive a felicidade de encontrar, numa destas navegações noturnas pela internet um exemplar do livro " Sensibilidade" cuja leitura está sendo para mim o mais puro deleite.
Não é a toa, que o autor deste blog escreve tão bem, as origens não mentem!
Beijos

Juliana Grimaldi postou 23 de setembro de 2010 às 12:08

Descobrimos então de onde vem essa sua "veia artística" rs.
Lindos olhos, linda descoberta.
E lindo demais a descrição de Humberto de Campos.
Quero um amor assim. rs.
Abraços.

Marise postou 23 de setembro de 2010 às 13:27

Juliana,
Pelo que sei foi um amor sofrido , dolorido. Portanto não queira um assim para você.
Humberto de campos era amigo e admirador da poetisa e se não me engano( por favor, alguém me corrija se estiver errada), colega de cadeira na Academia Brasileira de Letras.
A "veia artística literária" tem uma influência daí sim!
rsrrsrs
Bjs

Isabel postou 23 de setembro de 2010 às 14:08

Nossa, que bacana! Descobriu isso tudo pela internet? A internet é mesmo uma ferramenta e tanto para descobrirmos muitas histórias da nossa família. Foi muito útil pra minha avó quando ela resolveu fazer um livrinho sobre a história da nossa família. Uma pena que a Carmem Cinira morreu tão jovem e sem filhos. Poderia ter produzido muito mais textos lindos. Isso me faz lembrar Noel Rosa, que também morreu jovem e tinha uma produção enorme e rica.
Beijos.

Unknown postou 23 de setembro de 2010 às 15:27

Uma bela descoberta, uma herança assim é deixada por poucos.
Lindos os textos dela!!!

Beijos

maria alida postou 26 de setembro de 2010 às 19:47

Aiai...Quem me dera um dia, mas( bem distante...) ser revenciada assim por um neto ou bisneto...

É muito lindo e inspirador. Me fez sonhar e refletir sobre o legado de cada um...

Ah, tava pesquisando pra saber o autor de um texto que li e gostei. Aí, descobri seu blog, me encantou tanto que esqueci a pesquisa...rs

mvsmotta postou 26 de setembro de 2010 às 20:48

Maria,

Agradeço a visita e suas palavras tão gentis. Obrigado!

Um beijo

Carlos postou 22 de outubro de 2014 às 12:31

Marcos Vinícios, gostaria de ter seu email para entrar em contato. Pois tenho algo que possa ser de seu interesse. Sobre sua tia avó, Carmem Cinira. Grato Carlos. kakaantiguidades@gmail.com

 
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