Porquê virei chileno (só um pedaço)

Postado em 13 de out. de 2010 / Por Marcus Vinicius

Acordei às 3:00 da madrugada para pegar um taxi pro aeroporto, logo a monotonia da paisagem dos campos da Argentina que assistia do alto do avião contribuiu muito para meu sono dos justos. Sorte que uma aeromoça da Lan me acordou para "colocar o assento na posição vertical", devido à turbulência que o avião sempre enfrenta quando voa sobre o espetáculo que eu estava prestes a ver pela janelinha: a Cordilheira dos Andes.

É na forma desta imensa parede gelada que o Chile dá boas vindas a quem o visita. Mas diferente do que se poderia imaginar, os chilenos estão longe de ser um povo frio. São amistosos, generosos, solícitos e pacientes - até mesmo com o meu parco espanhol coalhado de sotaque argentino - o qual quase todos corrigiam e diziam "passe um ano no Chile e fale como um de nós". Quem me dera poder passar um ano entre eles.

A outra "parede" que impressiona é a de bandeiras nacionais. Não estamos numa Copa do Mundo, não tem nenhum evento esportivo mundial significativo do qual os chilenos estejam participando, mas ainda assim os carros, lojas, praças e casas exibem a bandeira nacional com tanto orgulho quanto o que eles mostram ao falar de seus maravilhosos vinhos, do seu excelente churrasco e até mesmo o porque de preservarem nos prédios que circundam o palácio presidencial de La Moneda as marcas de tiros do golpe que instalou Augusto Pinochet no poder.

Essa aliás é outra característica dos chilenos: não renegar nada do seu passado e compreender que tudo ocorreu para que eles chegassem onde estão hoje, até mesmo uma ditadura militar de alto custo em vidas, mas que tirou o país do subdesenvolvimento.

O acidente e o resgate dos mineiros presos na mina San José - eu estava lá quando a perfuratriz chegou ao abrigo, possibilitando o início do resgate - certamente contribuiu para o aumento do nacionalismo, mas dava pra notar que era algo mais, que aquilo faz parte do jeito de ser deles.

Em suas largas ruas e alamedas, Santiago se espalha aos pés da Cordilheira, que domina sua paisagem. Como em toda metrópole o povo é apressado, os carros passam rápido e o trânsito das 17:00 horas apesar de falar castellano incomoda tanto quanto se falasse com sotaque paulista ou carioca. Mas ao invés de voltar para casa com medo da violência, os chilenos vão para uma infinidade de bares, cafés, centros comerciais e boates.

Conheci o "Pátio Bella Vista", uma espécie de shopping a céu aberto cheio desses bares e lojinhas, com um movimento que nos finais de semana não acaba antes dos primeiros raios de sol. Conheci a "chicha", uma bebida feita a partir da fermentação da uva, que me disseram ser como a mulher chilena: aparentemente doce e inofensiva, porém escondendo uma verdadeira diaba por dentro. A mulher não sei, mas a chicha realmente me nocauteou.

Sou um apaixonado pelo idioma espanhol - que no entanto ainda não domino perfeitamente - e as moças falando com aquela língua entre os dentes ficam um charme, tal como uma policial - que eles chamam de "paquitas" - me ensinando como chegar à avenida Merced. Vocês não imaginam como esse "Merced" fica bonitinho hablado por ellas. É verdadeiramente um prazer para mim passar dias tendo a língua de Cervantes como meu idioma oficial. Lojas, padarias, farmácias, sorveterias, livrarias, tudo com a tecla SAP acionada. Uma delícia.


Delícia aliás que é uma palavra até tímida para descrever os bifes de 200 metros de altura que eles servem e o seu sanduíche nacional, o Barros Luco, um amontoado de filés cortados na fina espessura de uma fatia de mortadela, cheios de queijo e que não por acaso era o favorito de um ex-presidente, que acabou batizando o sanduíche.

Fui até Valparaíso e Viña Del Mar - que aliás foi fundada por um português - e, como não poderia deixar de ser, molhei meus pés no Oceano Pacífico, como se nunca tivesse visto o mar na vida.

Voltei para o Brasil com um pedaço do meu coração naturalizado chileno definitivamente. A imagem das praças gramadas de Santiago, cheias de gente deitada sob as árvores nos finais de tarde nunca mais se apagará na minha mente, assim como a lembrança do adorável povo chileno.

Povo que não merece certas visitas, como a de uma brasileira que fazia um barraco numa panaderia porque cismou que a mocinha do caixa tinha que entender o português raivoso dela. Na cabeça da "sujeita", como ela era turista todo mundo tinha que se esforçar para entende-la e não ela, visitante num país estrangeiro, é que tinha obrigação de dar o seu jeito.

Ainda virou pra mim, como que pedindo aprovação, e disse: "sou turista, eles tem que se esforçar pra me atender, não é?", ao que, envergonhadíssimo, respondi:

- Perdon, no comprendo.

Desculpa mesmo, mas naquela hora nunca fui tão chileno.

12 Comentários:

Anônimo postou 13 de outubro de 2010 às 12:01

Puxa, que inveja de ti!!!! Deixei de ir ao Chile este mês por motivos que não cabe agora mencionar, mas o sentimento que te fez postar este texto é o mesmo que senti ontem à noite ao ver o primeiro mineiro ser resgatado. Parabéns ao governo chileno por ter envidado tantos esforços para salvar aquelas vidas. Senti tanto orgulho como se chilena fosse, senti vontade de gritar Chi- chi -chi - le - le - le !!!

Anônimo postou 13 de outubro de 2010 às 12:45

Talvez esse seja o motivo de tantas bandeiras chilenas no caminho, enquanto fazes turismo eles vivem a euforia de ter seus pais-irmãos-esposos tirados de dentro de um buraco no fundo da terra na metade do tempo anteriormente prometido.

Unknown postou 13 de outubro de 2010 às 12:47

O chile é mesmo um belo país. Espero que tenha trazido de lá muitas boas histórias.

Abraços

mvsmotta postou 13 de outubro de 2010 às 13:22

Anônimo 2,

Não tem nada a ver com os mineiros não, isso só aumentou mais ainda o nacionalismo deles. É coisa normal mesmo, eles sentem orgulho de ser chilenos (e não sem razão).

Abs

Rosângela Monnerat postou 13 de outubro de 2010 às 13:44

Marcus,
essa tocou meu coração, em profundidade.
Uma das melhores pessoas que conheci nos últimos anos, é chilena. Alíás, o chileno mais "mineiro" que conheço. Neste caso, um apaixonado por Minas, mais particularmente por BH,cidade que ele diz ser parecida com Santiago, talvez por causa do acolhimento além da semelhança física, claro.
Desde que conheci este meu "afilhado" emprestado, sim porque ele se casou com a minha afilhada linda de Niterói; enfim, desde que fizemos contato pela primeira vez, ele mostrou a que veio.
Chileno bacana, gente boa demais. Que tem um coração enorme que bate tão patrioticamente, que conseguiu trazer boa parte de sua paixão por aquela terra, para ajudar no desenvolvimento da nossa.Inclusive com valores fraternos indiscutíveis.
Hoje me emocionei com o resgate daqueles trabalhadores. Foram muito dignos, até no sufoco que passaram. Aquele que vibrou com seu grito de guerra, sei lá, aquele tem a garra da vida em seu brado. Coisa linda!
No mais, é muito bom saber que essa gente é assim. Tão intensa lá quanto meu amigo é aqui, entre nós.
Tomei estes seus comentários como elogios, e me senti em casa como se fosse gente minha, hospitaleira.
Vou enviar pra ele o que você escreveu. Bacana!
Abraços.

Anônimo postou 13 de outubro de 2010 às 17:03

O Chile sempre esteve nos meus planos. Sua descrição me instigou a vontade ... Parabéns !! []


www.silenciandocompalavras.blospot.com

vitão postou 14 de outubro de 2010 às 12:58

Caramba, eu fiquei na calle merced! Não tomei o goró que vc tomou, mas peguei umas chilenas e umas colombianas kkkkkkkkk

Lila postou 14 de outubro de 2010 às 16:56

Fiquei com água na boca deste Chile que você descreveu. Adoraria ir até lá, minha paixão pela América Latina, prefiro este povo que qualquer hotel 5 estrelas da Europa. Um dia serei eu a contar histórias assim, hoje deixei que você me levasse até lá... viajei com suas palavras! Obrigada

Fernando Braga, Jr. postou 14 de outubro de 2010 às 21:34

Bacana ver a sua experiência e sua maneira de vivê-la.

Sou também um fã incondicional do Chile, por supuesto !

EXPEDITO GONÇALVES DIAS postou 17 de outubro de 2010 às 13:33

Depois deste post quero visitar o Chile, rs rs.
Grande abraço!

Maraguary postou 27 de outubro de 2010 às 05:13

Te leio "randomicamente" e numa dessas, cá estou nesse post de doer o coração!!! Guri, como tu escreves bem! Praticamente visitei o Chile neste post junto contigo! Só faltaram as fotos para florear tudo isso que descrevestes tão bem!!! Arruma aí um cantinho e coloca tuas 3.248 fotos (que sei que tu tirastes!) pra gente poder se esbaldar de encantos nesses lugares todos aí descritos!!!

FelipeBFontana postou 30 de julho de 2011 às 06:23

Um dia ainda faço uma "mochilada" destas para o Chile! Ah se faço!

 
Template Contra a Correnteza ® - Design por Vitor Leite Camilo