Os Silvas

Postado em 19 de abr. de 2010 / Por Marcus Vinicius

Sou da época em que ainda se vendia discos de vinil. Aliás, sou da época em que ainda existiam discos de vinil e eles eram vendidos até em supermercados. Pode parecer incrível hoje com os mp3, iPods e o escambau, mas houve um tempo em que ao lado de tomates, abacaxis e iogurtes podíamos comprar discos.

E foi numa segunda-feira (nunca mais me esqueci) que comprei meu primeiro disco dos Smiths, uma cópia do "Hatful of Hollow". Cheguei em casa, coloquei o disco na vitrola (essa frase me faz sentir com uns 100 anos) e fui tomado por verdadeiro choque.

Não, não foi um bom choque. Meus ouvidos acostumados até então a ouvir sons de pré-adolescente como heavy metal acharam aquilo um horror. Joguei o disco atrás do armário (isso mesmo, minha raiva era tanta que eu joguei atrás de um armário) e esqueci ali.

Até que um dia, bendito dia, resolvi dar uma segunda chance a ele. Tirei a poeira acumulada, coloquei pra tocar e quando os fortes acordes de "William, It Was Really Nothing" começaram parecia que a poeira tinha feito algum milagre naquilo tudo, porque o choque foi outro. Foi algo mais para "Meu Deus, como eu vivi até hoje sem ouvir e sem gostar disso?".

O que mudou? Com certeza foi ouvir Smiths querendo conhece-los e não procurando mais um Twisted Sister da vida, que a partir daquele momento ficou relegado eternamente à condição de rock farofa.

As faixas foram passando e "What Difference Does It Make?" levou até "This Charming Man", "How Soon Is Now?", "Heaven Knows I´m Miserable Now", "Girl Afraid"...era literalmente um mundo novo se abrindo para mim.

Comecei a comprar seus discos com a compulsividade que minha mesada permitia, como que para comprovar que o milagre se repetiria. Sempre se repetiu.

Minha segunda aquisição foi um "Meat Is Murder", que se não é o melhor disco deles, com certeza seria o melhor de qualquer outra banda que não seja os Smiths. Só a presença de "That Joke Isn't Funny Anymore" e da faixa título já fariam a carreira de muito artista por aí.

Até que veio "The Queen is Dead". Amigos, todas as faixas ali reunidas formam, na minha opinião, o melhor disco que qualquer ser vivo já fez em todos os tempos.

Não existe ali nenhuma música que não diga algo sobre aquilo que vivemos no momento, independente do nosso humor, não existe nada que não seja brilhante, esmerado e feito com o capricho e a inconsequência de quem nem imagina estar entrando para a história.

São músicas eternas, o que não é pouco, mas acima de tudo são músicas atemporais. Daqui a 100 mil anos, se algum alienígena chegar ao planeta Terra e encontrar em alguma capsula do tempo um reprodutor de músicas com "The Queen is Dead" nele, este extra-terrestre dirá: "é o melhor disco que quaquer ser em todas as galáxias ja fez".

Naquele tempo não existia a facilidade de hoje, então só consegui o primeiro disco dos Smiths, chamado simplesmente "The Smiths", bem mais tarde. Igualmente genial. É impossível determinar apenas baseado na qualidade do som qual é o primeiro ou o último trabalho deles.

Só para você, que está aqui lendo um cara falar de sua banda favorita, ter uma idéia,
"Reel Around The Fountain" e "You've Got Everything Now", que são obras-primas, estão nesse disco de estréia.

Isso quer dizer que eles não evoluíram? Pelo contrário. Quer dizer que a diferença entre o formidável e o perfeito é tênue e foi nessa linha que caminharam.

Em 1987, junto com "Strangeways, Here We Come", veio a notícia do fim da banda. Posso dizer que o sentimento que me tomou foi o vazio, juro. Foi como se algo que era "meu" por direito estivesse sendo tomado.

"A Rush and a Push and the Land Is Ours", "I Started Something I Couldn´t Finish", "Paint a Vulgar Picture" vieram naquele presente de despedida. Mas foi difícil ouvir tudo aquilo sabendo que não viria mais nada depois.

No mesmo ano desse fim abrupto ainda chegaram por aqui duas coletâneas de singles até então inéditos no Brasil, "Louder Than Bombs" e "The World Won't Listen", que trazia "Panic", "Ask", "Asleep", "Unloveable", "Half a Person", "Strech Out and Wait" e "You Just Haven´t Earned It Yet, Baby", uma verdadeira covardia musical.

Em 2000 Morrissey veio ao Brasil pela primeira vez. Eu estava lá, quase sem acreditar que era ele ali na minha frente, cantando antigas e novas canções. Lá pelas tantas, alguém levantou um cartaz com a frase "What Took You So Long?" ("Porque você demorou tanto?").

Ele leu, sorriu e respondeu "Porque nunca tinham me chamado!". Ninguém acreditou, mas não conheço uma única pessoa ali presente que não tenha pensado "Se é assim, então volte amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã!".

Entre letras acidamente irônicas e avassaladoramente melancólicas escritas por Morrissey, entremeadas pelo dedilhado inimitável e melodioso da guitarra de Johnny Marr, eles embalaram amores, dissabores, tristezas e alegrias de muita gente. A bateria de Mike Joyce e poderoso baixo de Andy Rourke, que não eram músicos menores, terminaram sendo coadjuvantes de tanta genialidade, mas coadjuvantes de luxo.

Os Smiths conseguiram tanto porque eram universais em sua "britanicidade". A escolha deste nome simples, "Os Silvas" numa tradução livre, as roupas básicas que usavam, o culto zero à imagem, temas como amor, rejeição, dificuldade para se "encaixar" na sociedade, enfim, eles eram pessoas comuns fazendo música para pessoas comuns.

Daí o estrondoso sucesso e a legião de fãs que até hoje não se conformam com seu fim.

Deixaram todos órfãos, mas pelo menos com uma senhora herança.

4 Comentários:

Alexandre Core postou 19 de abril de 2010 às 09:12

Cara, corri aqui para pegar o meu cd dos "Os Silva". Muito bom poder voltar a eles sempre que quero ou sempre que alguém lembra de como são bons.

Pablo Vallejos postou 19 de abril de 2010 às 09:16

Porra, esse texto tá ótimo.

Embora não tenha vivido esse despertar com os vinis e a paixão cedo pelo The Smiths, possuo uma adoração pela banda que não consigo explicar. Realmente, deve ser algo nas letras, acordes, não sei.

Mas teu texto conseguiu traduzir, em palavras e memórias, tudo que eu gosto muito na banda. 'Os Silvas' é foda e ponto final.

Pablo Vallejos postou 19 de abril de 2010 às 09:18

Porra, esse texto tá ótimo.

Embora não tenha vivido esse despertar com os vinis e a paixão cedo pelo The Smiths, possuo uma adoração pela banda que não consigo explicar. Realmente, deve ser algo nas letras, acordes, não sei.

Mas teu texto conseguiu traduzir, em palavras e memórias, tudo que eu gosto muito na banda. 'Os Silvas' é foda e ponto final.

Cissa postou 19 de abril de 2010 às 14:20

Acho que lendo essa sua descrição da obra dos "The Smiths", todos sentiram vontade de correr atrás dos seus próprios dvds (ou "discos" rs talvez...) tirar a poeira e matar a saudade. Para cada pessoa, eles trazem específicas e ótimas lembranças. No meu caso, "Smiths" lembra Arraial (do Cabo) e seus azuis... quando ainda era linda e calma. Ouvíamos direto!!! No mais, sempre uma delícia ler o que vc escreve. Beijo

 
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