A Briga

Postado em 2 de jul. de 2010 / Por Marcus Vinicius

Saiu de casa às sete da manhã já cansado. Os vizinhos brigaram a noite inteira de novo, e mesmo com as paredes reforçadas do velho prédio onde vivia a barulheira foi infernal.

Lá pelo meio da noite, desistindo de brigar contra os seus ouvidos que não o deixavam dormir, ele resolveu acompanhar aquela novela do outro lado da parede. Os tempos da Rádio Nacional tinham ido embora, mas ele poderia curtir aquela máquina do tempo ali da sua sala de estar.

Era alguma coisa relativa a uma mulher que ele olhara demais na boate aonde os seus vizinhos foram. Ele se defendia dizendo que ela estava bêbada e que imaginava coisas (sendo homem e sabendo como funciona isso, achou que ela tinha razão, mas...). Além dos seus ouvidos e alguns copos, as portas do apartamento e os móveis,arrastados e provavelmente transformados em barricadas, também sofreram.

A faena durou até as 6 da manhã, horário em que ele enjoou daquilo e os dois ficaram quietos(se mataram-? cansaram? fizeram as pazes?), foi tomar seu café e saiu para o trabalho.

No metrô olhava todos os casais que passavam por ele e imaginava se algum destes também era dado àquela batalha das louças como os seus vizinhos. Tanta coisa no mundo, morte, destruição, efeito estufa e tem gente ainda se preocupando com a direção dos globos oculares de seus pares. Porra, deixa olhar, tem coisa pior, acredite.

Trabalhou o dia todo entre bocejos e dores de cabeça por causa da noite mal (não) dormida, almoçou um galeto pensando naqueles dois putos que o infernizaram sem saber, leu os jornais com notícias já meio dormidas da manhã, terminou um livro que começara havia dois meses e não conseguia chegar ao final e quase caiu com o queixo na mousse de macarujá que pediu de sobremesa.

Maior sensação de ressaca, boca seca, vontade de não fazer nada e tudo por causa de uma merda de uma novela de rádio, transmitida através das ondas da sua parede. Se pelo menos fosse um porre de whisky, vá lá.

Chegou em casa à noite e com quem subiu pelo elevador? Ela! Morena, seus 26 anos, corpo bonito, roupas elegantes, perfumada. Não conseguiu disfarçar seu olhar de vergonha, talvez já imaginando que ele escutara o recital de urros da noite anterior.

Quase não conseguiu encara a bela também, afinal, além de ter ouvido tudo mesmo, achava que ela era meio doida e podia pensar que ele estava olhando seu decote, suas coxas, sabe-se lá e enfiar uma lapiseira no seu ouvido.

O pior é que moravam no décimo-quinto andar e o elevador era desses antigos, com porta pantográfica, uma eterninade de andares morosos para aumentar aquele desconforto.

Quando a pressão já estava hiperbárica ela fulminou "desculpe por ontem tá?". Porra, pra que aquilo? Ele fingiria que não ouviu, ela que nada aconteceu e os códigos de hipocrisia social cuidariam do resto, mas não, aquela pergunta colocava toda a ordem natural das coisas por água abaixo.

"Que isso! Achei que era uma festa, sarau, debate, sei lá, tudo bem". Meio irônico? Agora já era tarde. Ela sorriu e observou que moravam ali há seis meses e ainda não tinham conversado, "mora sozinho aí ou com a esposa?" "sozinho com meus discos e livros" "ah, sossego é bom às vezes né?" "uhum" "sinto falta disso, você deve namorar adoidado né?""nem tanto, até gostaria mas...""não tem tempo?""faltam pretentendes em número adequado para namorar muito""incrível, um cara como você". Silêncio.

"Quer tomar um café lá em casa?""Mas e o seu marido?Melhor não"."Posso conhecer a sua então? Seus livros, seus Cds, acho que eles não implicariam como o meu marido faria né?".

Entram, ele oferece um whisky já que não tem café. Conversam poucos minutos sobre futilidades e em menos tempo do que esperavam estavam nus, recuperando-se do "você sabe o que" que fizeram.

"Acho que eu precisava é disso sabia? Uma vingança silenciosa""Vingança? Seu marido te traiu?","Não, olhou para outra numa boate, deu o maior mole, você precisava ver","Mas então a moeda de troca não seria você olhar para outro também? E se ele descobre isso que fizemos e resolve te devolver?","Aquele filho da puta, será? Já passaram 20 minutos da hora que ele normalmente chega e nem me ligou para avisar nada...".

"Só me faz um favor?","Claro, depois do que você me fez, tudo", "Deixa pra tirar isso a limpo semana que vem? Senão eu não trabalho amanhã". Ambos riram.

Naquela noite dormiu como um anjo, o silencio reinando no seu apartamento e principalmente, no dos vizinhos. Mas de manhã, ao preparar o café já bem mais disposto, pensou "espero que ela não se esqueça da briga da semana que vem".

8 Comentários:

@victor_fs postou 2 de julho de 2010 às 22:49

Muito bom mesmo, muita realidade nesse texto, parabéns.

Pr Julio Soder postou 2 de julho de 2010 às 23:11

Gostei...achei muito bom...mas, dependendo do público a ser atingido, algumas coisas tens que mudar.

mvsmotta postou 3 de julho de 2010 às 03:49

Meu público alvo é o público inteiro. :)

Um abraço.

Unknown postou 3 de julho de 2010 às 05:13

Hahahahaha...Perfeito!!!! Aliás, suas frases e seus textos estão sempre no ponto...

Henri Sardou postou 3 de julho de 2010 às 05:44

A história é ótima! Sobre o texto, só senti falta de uns travessões nas falas dos personagens...
Abrazos,

Anônimo postou 3 de julho de 2010 às 07:54

Contextualização da vida cotidiana,..., deveria eu ter vivenciado assim tmb, prq não cmg?! kkkkkkkkk

beijos ú&e =*

@bocadelata postou 3 de julho de 2010 às 20:54

Bah, bem que minha vizinha podia brigar também!!!presser

Isabel postou 5 de julho de 2010 às 13:52

Só falta publicar um livro, pois já é um escritor! ;)
Beijos

 
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