Chega a ser clichê citar a velha frase do carnavalesco Joãozinho Trinta, que dizia que "quem gosta de miséria é intelectual, pobre gosta é de luxo", mas infelizmente essa frase parece que jamais vai deixar de ser verdadeira.
Veja o caso de norte-americanos e europeus que vêm para o Brasil e acham lindo favela, churrasco na laje e toda aquela pobreza alegórica que eles tanto curtem. Tudo bem que eles voltam para a suas cidades limpas e organizadas depois de uma ou duas semanas de passeio, mas sinceramente, nunca pensei em visitar a Somália só para ver de perto um faminto.
Nossa classe progressista, de esquerda, gente boa, de raiz, todos eles são bem parecidos com esses gringos, mas com o agravante de não desinfetarem daqui depois de uns dias de passeio.
Veja por exemplo como essa gente lida com índios e nordestinos, só para dar um exemplo.
Um progressista de mesa de bar no Rio de Janeiro ou em São Paulo tem verdadeiro pavor de índios de short da Adidas ou celular. Ficam irados porque os nordestinos não andam por aí de chapéu de couro, comendo girimun e alguns até, pasme, nem gostam de baião.
Nossos intelectuais acham que é uma boa idéia fazer uma ONG que ensine rap, funk e bater lata para moradores de favelas, que já crescem ouvindo rap, funk e batendo em latas. Aprender a tocar violino nem pensar, isso não é "de raiz".
Há algum tempo surgiu no Nordeste uma espécie de forró (que eles chamam de "Oxente Music") que foge daquela coisa do chapéu e sandália de couro e visões sobre seca que fariam inveja ao Gláuber Rocha. É mais rápido, fala de coisas do dia a dia como dores de corno e amores não correspondidos e caiu nas graças do "povão" de lá.
Como resposta a isso, emergiu em São Paulo o "forró universitário" , quando estudantes da USP ficaram incomodados com a "velocidade" da Oxente Music, que não era "boa para dançar", e resolveram tirar o Pé de Serra do baú.
O mais engraçado é que a turma da Zona Sul do Rio de Janeiro logo aderiu e vimos a estranha situação de jovens de classe média do Sudeste dizendo que os nordestinos da feira dos paraíbas, em São Cristóvão, não eram "de raiz", afinal, tinham se afastado do "verdadeiro nordeste".
É quase como um canadense dizendo que na Portela não se faz mais samba de verdade.
Mas isso nem é o pior. Quando viajam ao Nordeste e vêem cidades grandes, com prédios imponentes e carrões na rua, é difícil um cidadão "do sul" não se espantar.
- Ué? Cadê os vaqueiros? Cadê os moleques de pé no chão comendo calango? Ah, isso aqui não é original, tem até Burger King!
E toca de alugarem jipes para ver mandacarus e chão rachado, já que isso é que é "de raiz".
Convenhamos, não tem nada mais chato do que viajar ao exterior e ouvir aquelas cretinices:
- Brasileiro? Ah! Adoro! Samba! Mulata! Favela! Caipirinha! Pelé!
No entanto a classe intelectual do país parece adorar isso. O melhor exemplo é sua fixação por botequins pés sujos, porque esses sim, são "de verdade". Sandália de couro? "De verdade". Chegar no Rio de Janeiro e agir como se fosse um malandro criado na Lapa do Madame Satã? "De verdade". Enaltecer toda a beleza sociológica e antropológica de uma comunidade do lixão? Ah, isso é muito "de verdade".
O vendedor de balas que fica sambando no sinal, "divertindo" as pessoas nos carros é muito mais "de verdade" do que o vendedor de cocada que só trabalha nisso para pagar seus estudos e aprender grego. Esse além de raro, não é " de raiz", afinal, "pra quê falar grego?".
Quando um garotinho do Complexo do Alemão pediu ao governador que construísse ali uma quadra de tênis, porque ele queria aprender a jogar, ouviu do sujeito:
- Por que tênis, rapaz? Vai jogar futebol.
Só faltou completar:
- Ou ser mestre-sala.
Afinal, tênis não é nada "de raiz".
O garoto da favela que quer tocar tamborim na escola de samba é "de verdade", mas se algum quiser tocar guitarra numa banda de heavy metal vai ser "aculturado", com "vergonha de ser brasileiro", praticamente alguém "de mentira".
É o "ser brasileiro" como um papel, um personagem, e não uma simples contingência de nascimento.
Mas nada é mais chato do que quando chega Outubro e começam a pedir a criação de um "Dia do Saci". Dia do Saci? Sério? Jura que vocês não acham que o Saci é só um "negrinho sem perna e aculturado que se veste de Papai Noel"?
Não consigo decidir quem me irrita mais, se os que comemoram Halloween ou os que enchem meu saco defendendo a cultura nacional.
Tudo bem que comemorar Halloween é invenção de uns anos pra cá, é uma moda importada dos Estados Unidos, mas qual o problema? Essa intelectualidade acharia lindo se descobrisse que existe uma escola de samba na Polônia.
Só fico me perguntando se os intelectuais de lá achariam isso "de raiz".
2 Comentários:
Muito bom!
Meus parabéns vara. Magnífico!! A mais pura verdade.
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